UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

1.7.08

Espaço e tempo em BR3

Por Jonas Arrabal

Em ensaio publicado na revista Sala Preta – publicação da universidade de São Paulo – Hans-Thyes Lehmann fala sobre o que ele chama de teatro pós-dramático e suas novas relações de conflito, de conflitos de idéia, que esse teatro trás, em oposição ao teatro dramático apresentado por Peter Szondi em seus dois clássicos Teoria do Drama Burguês e Teoria do Drama Moderno. Lehmann fala que o teatro é feito de uma série de elementos, como pessoas, espaço e tempo, e o que acontece na modernidade é que esses elementos que sempre estiveram, de certa forma, relacionados rompem-se. E é isso que eu gostaria de propor nesse ensaio: observar essa explosão desses elementos co-relacionados no teatro contemporâneo de alto índice narrativo, principalmente tendo como exemplo a montagem do grupo paulista Teatro da Vertigem, mais especificamente o seu último trabalho BR3, dirigido por Antonio Araujo. Dentre os três elementos o tempo é o que mais me fascina. Sobre ele Lehmann comenta: “ O tempo tem para nós uma função fortemente ideológica. Com a descontinuidade do tempo, podemos nos sentir em casa. Com a descontinuidade, ou com uma nova construção desse tempo, que não a da continuidade, a gente pode perceber ou suspeitar que existem outras possibilidades de tempo ou de construção dessa realidade”(Lehmann, 2003. 11). Ainda nesse mesmo ensaio Lehmann lembra de um episodio em que o cineasta francês Jean Luc Godard é criticado por um jornalista, ao perguntar sobre o seu filme, se ele conseguia detectar se o seu filme possuía começo, meio e fim. Godard responde que sim, porém não necessariamente nessa ordem.
O que verifico no espetáculo de Araujo são essas questões: suspensão do tempo real, redimensão do tempo, uma vez que na obra do teatro da vertigem não é possível detectar começo, meio e fim, e sim uma ordem talvez godardiana para essa noção invertida do que seria realmente o começo, o meio e o fim.
Br 3 começa no ano de 1959, guando Jovelina sai do Nordeste, grávida, para ir atrás do seu marido que trabalha na construção da nova capital do país. Ao chegar em Brasília fica sabendo da morte do marido no canteiro de obras. Ela parte para São Paulo , muda de vida , passa a comandar o tráfico na periferia, num bairro chamado Brasilândia. A história ainda vai rodar em meio a uma outra cidade na fronteira com a Bolívia, chamada Brasiléia e a saga segue até o ano de 1997. Mais do que relatar a peça, mesmo de forma sucinta, quero mostrar o percurso pelo qual segue a narrativa. Tempo e espaço já estão problematizados e não é possível verificar na estrutura da narração uma estrutura linear para os acontecimentos dos fatos. A histórica começa em 1959, com a migração do nordeste para o futuro distrito federal, ainda planalto em construção e termina no ano de 1997, porém a narrativa são segue esses acontecimentos causais.
Em ensaio sobre a montagem em livro d sua organização, Silvia Fernandes fala: “ Composto por meio de sucessivos deslocamentos da narração para a ação, das vigílias da Evangelista para o drama familiar, o texto se aproxima do procedimento que Jean-Pierre Sarrazac chama de rapsódico, conceito transversal no teatro contemporâneo, indicativo de uma montagem híbrida de elementos líricos, épicos e dramáticos e de uma construção oscilante, tramada no vai-e-vem entre tempos e lugares distintos.” Realmente, o que é possível verificar na estrutura de BR 3 é justamente essa hibridização de formas, onde o épico ganha um patamar muito grande, dentro dessa narrativa que passeia por décadas, que conta a história de toda uma geração. Ao falar de Jean Pierre-Sarrazac lembro de outro ensaio, escrito por Luiz Arthur Nunes onde ele relata a sua experiência com a montagens de textos ditos não dramáticos, com a sua peça A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, que não fora escrita como estrutura dramática. Nunes transpôs esse texto para o palco sem haver transposição de gêneros e os atores trabalham como narradores da ação, e utilizando o conceito de Sarrazac, ele os chama de atores rapsodos.
Bernardo de Carvalho não é um dramaturgo. É um brilhante autor de literatura e que participou do processo junto com Antonio Araujo, indo em campo, fazendo trabalho de laboratório junto com o elenco. É possível verificar a experiência de Bernardo de Carvalho em ensaio escrito pelo próprio escritor, do qual ele relata a sua experiência numa igreja evangélica na periferia de Brasilândia, que serviu para escrever inclusive uma das cenas do espetáculo e até se inspirar numa personagem.
Uma vez escrita o espetáculo, o texto de Bernardo de Carvalho não é acatada como o texto dramático a seguir durante todo o processo e que culmina na apresentação daquilo que o autor escreveu. O processo da companhia se dá mais através de acumulação de experiências durante todo o processo, do que no simples ato de decorar um texto previamente escrito e lançar em cena. Dezoito atores da companhia partiu para a estrada e seguiram milhares de quilômetros de Brasília até Brasiléia, no norte do país. Muito do que está na peça vem da experiência e da vivência dos atores nesse percurso, inclusive o próprio Bernardo, inclusive o próprio Araujo. Existe uma divisão de autoria do espetáculo entre todos os envolvidos, uma pesquisa de campo.
Brasiléia, Brasília e Brasilândia reflete três Brasis bastante heterogênios. Penso que a pesquisa da companhia vai ao encontro de descobrir justamente essa heterogeneidade e a multiplicidade de "Brasis" dentro de um imenso Brasil,plural e injusto.
Falei num desdobramento temporal e espacial do espetáculo, no sentido de pular o tempo, de contar décadas de história e percorrer milhares de quilômetros, de Brasilândia a Brasiléia, dentro de um barco no Rio Tiete. E a relação com o público? Toda “mágica” do teatro que reflete o drama absoluto não existe mais, e isso é decorrente no teatro contemporâneo. O público se localiza num barco e assiste a peça acontecer dentro de outros barcos ao redor. Toda a atmosfera do Rio Tiete vem a tona com o seu cheiro insuportável, com a escuridão que permeia os barcos e com as surpresas a todo instante. Relação antes apresentada por Lehmann entre pessoa, tempo e espaço que é quebrada é possível verificar aqui, nessa montagem cheia de audácia da companhia, mas que infelizmente não pode continuar devido ao alto custo da produção.
Sobre a dramaturgia de Bernardo de Carvalho aponto que ela é totalmente atualizada pela encenação de Araujo, e para isso cito o texto, também cheia de citações a outros teóricos, publicado na revista Percevejo. Ela afirma que: “ talvez a resposta dos dramaturgos à escritura autoral dos encenadores tenha sido uma dramaturgia não dramática, sem ação, que em última instância é autônoma. Pode ser lida como poema, depoimento ou relato(...)”
Talvez a dramaturgia de Bernardo de Carvalho possa ser lida como prosa, uma história de muitos "Brasis". E a encenação de Araujo possa ser vista e ouvida de forma autônoma dessa dramaturgia, tendo como matéria prima viva a carga de experiência que o grupo adquiriu com seu nomadismo durante semanas pelo país a fora.


CARVALHO, Bernardo de. Eu vivo nesse mundo. In: Teatro da Vertigem : BR3.Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006
FERNANDES, Silvia. Cartografia BR 3. In: Teatro da Vertigem : BR3.Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006
FERNANDES, Silvia. Notas sobre dramaturgia contemporânea. In: In Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.
Nunes, Luiz Arthur. Do livro ao Palco. In Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-dramático e Teatro político. In Revista do departamento de artes cênicas – ECA – USP. N.3, 2003.

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