UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

29.6.08

ANDANDO EM TERRA DE NINGUÉM

“Não sei resumir nenhuma das minhas peças. Não sei descrever nenhuma. Só sei dizer foi isto o que aconteceu, foi isto o que disseram, foi isto o que fizeram.”

Harold Pinter



No Man's Land (2007). By American Repertory Theater


Harold Pinter dirigindo No Man’s Land (2001).


Por Raphael Cassou



Este ensaio tem como propósito apontar algumas das características utilizadas por Harold Pinter na construção de sua linguagem dramatúrgica, usando como base o texto No Man’s Land.
Harold Pinter nasceu em 1930 em um subúrbio pobre de Londres, ao norte do Rio Tâmisa. Iniciou sua carreira artística como ator em 1950 sob o pseudônimo de David Baron. Em 1957 escreve sua primeira peça The Room. Ao todo já escreveu mais de 30 peças, roteiros e esquetes para teatro, cinema e televisão, que foram traduzidas e encenadas por todo o mundo. É um dos mais importantes renovadores do teatro moderno. Em 2005 foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Segundo o editor e tradutor inglês, Eric Kahane:

"O teatro de Harold Pinter revela um universo singular, cómico e aterrador, feito de sub-entendidos, mal-entendidos ou puros equívocos. Nele observa-se, como se fosse ao microscópio, personagens que vegetam confusamente, de quem quase nada se sabe e que, de repente, explode num confronto em que as palavras são armas mortais. Estamos no reino do falso para se atingir uma verdade que é ainda mais falsa. As perguntas que se colocam não são aquelas que nos vêm à cabeça e a resposta, ou a recusa de responder limita-se a aumentar o abismo da incompreensão. O pudor torna-se violência, o sorriso ameaça, o desejo impotência, a vitória desfaz-se."

Através da leitura do texto Terra de Ninguém torna-se possível estabelecer certas nuances marcantes que caracterizam a dramaturgia pinteriana. A forma pela qual a introdução de pausas e silêncios exercem forte influência nas falas das personagens e servem de fio condutor das ações, é um bom exemplo.
Terra de Ninguém (No Man’s Land, no original) foi escrita em 1974 e produzida em 1975 por Peter Hall, sendo apresentada no Old Vic (então casa do Royal Nacional Theatre) e estrelada por John Gielgud, como o sórdido e calculista Spooner e Ralph Richardson como o recluso Hirst. Esta produção foi levada à Broadway em 1976 e filmada para a televisão no mesmo ano.
Sua maior remontagem foi em 1992, no Almeida Theatre (posteriormente transferida para o West End) e foi estrelada por Paul Eddington como Spooner e o próprio Pinter como Hirst.
Em 1994, Jason Robards ( conhecido no cinema por filmes como Todos os Homens do Presidente e Filadélfia) interpretou Hirst e Christopher Plummer (A Noviça Rebelde) no papel de Spooner. Esta montagem, dirigida por David Jones, valeu uma indicação ao Tony Awards para Plummer.
Em 2001, novamente no Nacional Theatre, Spooner foi interpretado por John Wood e Hirst por Corin Redgrave sob a direção de Harold Pinter.
Terra de Ninguém, foi levada à cena em 2007, nos Estados Unidos, pela American Repertory Theater, sob a direção de David Wheeler no Loeb Drama Center.
Este texto apresenta quatro personagens masculinos. Hirst, um homem de aproximadamente 60 anos, Spooner também da mesma faixa etária, Briggs, homem por volta dos 40 anos e Foster, com cerca de 30 anos. A ação se passa na sala da casa de Hirst, um escritor de sucesso que vive recluso e afastado do contato com o mundo exterior em uma espécie de retiro voluntário. Spooner vem a seu encontro na tentativa de convencer o outro a participar de um evento literário promovido por ele. O visitante é contemporâneo de Hirst, os dois foram colegas em Oxford na década de 30, entretanto Spooner não alcançou a mesma fama que seu anfitrião. Briggs e Foster aparecem como empregados de Hirst: o primeiro é uma espécie de empresário/mordomo e o segundo é um jovem aspirante a escritor que nutre uma grande admiração por seu patrão e que faz as vezes de assistente e secretário particular. A missão de ambos é justamente proteger Hirst das investidas do sórdido Spooner e de manter seu chefe em seu estado de reclusão, procurando de todas as maneiras afastar Spooner de seus intentos. Para Spooner retirar Hirst de seu contato com o mundo exterior significa ter a possibilidade de retomar a sua carreira literária e ele habilidosamente consegue, através de um jogo de palavras intenso, driblar Briggs e Foster. E é neste embate de palavras que se estabelece a relação entre Hirst e Spooner. Muito dos pensamentos e das falas daquele são desconexas; isso é mostrado de forma ambígua, pois em nenhum momento há a certeza absoluta de que os saltos de lógica de Hirst são de fato verdadeiros ou apenas um hábil jogo para afastar seu interlocutor. Essa ambigüidade é revelada pelo estado recorrente de embriaguez no qual se encontram as personagens ao longo da peça. Harold Pinter se utiliza de uma cena inteira com as simulações de Hirst, na tentativa deste em reconhecer a figura de Spooner como seu conterrâneo de Oxford. Spooner por sua vez joga Hirst em um extravagante e perigoso jogo de reminiscências. Uma das características mais marcantes desta peça é a grande quantidade de pausas e silêncios nas falas das personagens. Isto revela que a cada investida o que se diz é criteriosamente estudado, em um fluxo de consciência das personagens que com suas falas procuram atingir mais fundo o seu oponente. É notório durante toda a peça os “estados de alma”, os “fluxos de emoção” e a falta de lógica nas quais se encontram principalmente Hirst e Spooner. Este por querer levar adiante seus planos e aquele em manter-se firme em suas convicções. Em dado momento Spooner chega a implorar ao outro uma oportunidade, como é observado neste trecho:

Spooner (para Hirst): Deixe-me viver consigo, ser seu secretário.
Hirst: Anda aqui uma varejeira? Escuto um zumbido.
Spooner: Não.
Hirst:
Está a dizer que não.

Spooner:
Sim.

Pausa
.

Hirst:Peço-lhe...que me tome em consideração para o cargo. Se eu estivesse usando de fato como o seu, o senhor ver-me-ia sob uma luz diferente. Sou extremamente hábil com comerciantes, bufarinheiros, angariadores, freiras. Posso manter-me em silêncio quando desejado ou, quando desejado, ser sociável. Posso discutir qualquer tema à sua escolha – o futuro da nação, flores selvagens, os Jogos Olímpicos. É verdade que conheci tempo difíceis, mas minha imaginação e inteligência continuam intactas. O meu desejo de trabalhar não sofreu erosão...”

Na fala de Spooner observa-se claramente uma última e desesperada tentativa de conseguir alcançar seu objetivo, mesmo que isso signifique colocar-se à disposição de Hirst e servir-lhe como empregado. Spooner entende de que alguma forma sua carreira perdeu-se no tempo e ele enxerga em Hirst a possibilidade de retomar sua carreira. Em outro momento também é claro o “fluxo de consciência” de Hirst que reflete a respeito de sua condição e brinda a isso. Desta forma ele reafirma o seu status quo e conclui que a “Terra de Ninguém” é um estado de alma dele e que nada vai afastar-lhe deste caminho.

“Hirst: Mas eu escuto sons de pássaros. Não ouvem? Sons como nunca ouvi. Escuto-os tal como devem ter soado então, embora eles não soassem a nossa volta. Pausa.
Sim. É verdade. Caminho em direção a um lago. Alguém me segue, por entre as árvores. Despisto-o facilmente. Vejo um corpo na água, flutuando. Estou excitado. Aproximo-me e vejo que me enganei. Na água não há nada. Digo pra mim mesmo, vi um corpo a afogar-se. Mas estou enganado. Não há nada lá.
Silêncio.

Spooner:
Não. O senhor está em terra de ninguém. Que não se move, que nunca muda, que nunca envelhece, que permanece para sempre num gélido silêncio.
Silêncio.
Hirst:
Bebo a isso.

Bebe.”

O diálogo final da peça, como demonstrado acima, apresenta a maneira dúbia com que Pinter encerra seu texto, pois não é revelado qual será o destino de Spooner, ou mesmo o de Hirst.
Com Terra de Ninguém, Pinter reafirma suas características como autor dramático, pois mais uma vez confronta o confinamento de suas personagens a determinado espaço. Apesar da didascália inicial apontar uma sala ampla, o que se vê durante o desenrolar da ação é um ambiente extremamente claustrofóbico.
Outro ponto a se destacar na dramaturgia de Harold Pinter é o veto pela decifração: não existem verdades absolutas e, mais ainda, em Terra de Ninguém existem enigmas que não necessariamente precisam ser mostrados, nem tão poucos explicados ou esclarecidos. É característico das duas personagens principais uma valorização do passado, mas isso não define o caráter destas.
Um artifício marcante na dramaturgia pinteriana é o uso recorrente das pausas e silêncios como marca, este recurso faz com que as personagens reflitam muito antes de se expressar, cada palavra é cuidadosamente dita. A este respeito, Mireia Aragay, em seu texto Harold Pinter: Teatro, linguagem, política afirma:

“O diálogo e sua ausência – os silêncios e as pausas – constituem um campo de batalha em peça como The Room (1957), The Birthday Party (1965) ou No Man’s Land (1975), há uma luta ou negociação verbal permanente e frequentemente dolosa. Qualquer coisa que diga – ou se cale – um personagem de Pinter se encontra submetido a este princípio de poder, ao qual significa que pouco importa se é certo ou não: não se trata de verificar seu valor referencial – sua relação com a realidade, com a verdade – mas de explicar o que poderíamos chamar de sua carga pragmática, aquilo que, como afirma Pinter, sublinha a fala.”

Sobre as motivações que movem as personagens de Pinter, Martin Esslin em seu livro Teatro do Absurdo escreveu:

“É o problema da possibilidade de jamais sabermos qual é a motivação real por trás das ações de seres humanos complexos, cuja constituição psicológica é contraditória e inverificável. Umas das grandes preocupações de Pinter como dramaturgo é justamente a da dificuldade de verificação.”

O próprio Harold Pinter diz a respeito desta sua maneira de construção dramática:

“Sinto que em lugar de incapacidade de comunicação o que existe é a procura deliberada de evitar a comunicação. A comunicação entre homens é em si tão apavorante que para evitá-la há um pensamento em jogo de disparates, uma permanente mudança de assunto, que são considerados preferíveis o que está nas raízes de suas relações.”

Harold Pinter, como na maioria de suas peças, nos presenteia com personagens que se revelam aos poucos e de forma incompleta e que exprimem em suas falas aquilo que lhes vêm à mente de forma inconsciente na aparência; revelam verdades que nem sempre gostaríamos de ouvir e que espelham a vida real tal como ela se apresenta; muitas vezes com requintes de crueldade.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PINTER, Harold. Relógio D’água – Teatro III, Terra de Ninguém, p.112-113.
ESSLIN, Martin. Teatro do Absurdo. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 3ª ed. 1968, p. 251-252.
ARAGAY, Mireia. Harold Pinter: Teatro, lenguaje, política, ADE Teatro, p. 44.
http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml http://www.artistasunidos.pt/harold_pinter.htm


Um objeto de reflexão: O Teatro Épico por Walter Benjamin

Por Pedro Alonso

O filósofo, sociólogo e crítico alemão Theodor Adorno (1903/1969) defende em seu Ensaio como forma a fluidez e a liberdade de uma prática literária que não almeja revestir-se de um rigor científico. Segundo o autor, “o ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho” (Adorno: 2003, 16-17). Sem a pretensão de moldar um objeto às normas e dogmas pré-estabelecidos, o ensaio rejeita, portanto, um enquadramento rigoroso às formas definitivas e fechadas, característicos do cientificismo acadêmico, pois “o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva (...) ele recua assustado diante da violência do dogma” (Adorno: 2003, 25). Baseado nesta premissa, e para a condução das reflexões sobre o tema proposto, foi escolhido como objeto de reflexão e análise o ensaio do também alemão Walter Benjamin (1892/1940) intitulado O que é o Teatro Épico: um estudo sobre Brecht, onde é possível verificar o esforço do autor de compreender e registrar o momento histórico que instala, no cenário artístico da Alemanha no final da década de vinte, de uma nova prática teatral calcada na desestruturação de formas pré-estabelecidas e estratificadas entre palco e platéia, texto e representação, atores e diretores, representativos de uma ordem social caracteristicamente burguesa. Trata-se de averiguar um momento específico, gerador dos primeiros experimentos textuais e cênicos de Brecht, o qual intitulou de Teatro Épico.
Adorno afirma que o objeto de estudo de um ensaísta parte sempre de um referencial anterior, algo que já foi escrito ou inventado. O papel deste último, portanto, é aprofundar, destrinchar, trazer a luz novos conceitos a cerca do que, outrora, fora observado ou atestado primeiramente: “Ele (o ensaio) não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio, superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito” (Adorno: 2003, 17). Parece que Benjamin segue a cartilha do companheiro e membro da Escola de Frankfurt, pois as observações que desenvolve em torno das formas do teatro épico são indagações de natureza empírica. O autor inicia seu ensaio problematizando a relação existente que se verifica no espaço sagrado da encenação: o palco. Primeiro porque Benjamin questiona o verdadeiro caráter das relações funcionais entre o teatro político e a platéia que a assiste. O aparelho teatral não se modifica. A disposição palco-platéia não se desestrutura e a frontalidade do palco italiano continua sendo o suporte para o desenrolar de fábulas com teor propagandista, limitando aquele a franquear (termo é utilizado pelo próprio Benjamin em seu ensaio) determinados procedimentos característicos do teatro concebido para uma platéia essencialmente burguesa. As encenações brechtinianas não permitem a instalação de um enredo coeso, harmônico, estruturado dentro do princípio das três unidades. Nas palavras do autor, “Uma de suas principais funções é a de interromper a ação, e não ilustrá-la ou estimulá-la. E não somente a ação de um outro, mas a própria” (Benjamin: 1985, 80). Se para retratar a realidade, a cena realista abre mão de recursos teatrais que não devam remeter ao espectador a lembrança de que está assistindo a uma representação, dentro de um espaço propício para tal finalidade, separado da platéia pela invisível quarta parede, o teatro épico, do contrário, “conserva o fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva”. Ele precisa dessa atenção constante do espectador para que este próprio possa ter os meios de tomar uma posição acertada sobre os infortúnios dos personagens que vê representado a sua frente, o que Brecht irá denominar de “atitude crítica do espectador” (Duvignaud: 1972, 30). Mais uma vez recorro a Adorno, onde determina que num ensaio, “o pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que e capaz de reduzí-lo a uma outra coisa (...) ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha” (Adorno: 2003, 27). Nota-se que neste belo exemplar de ensaio elaborado por Benjamin, num momento de forte turbulência política, ele não pretendeu esgotar o tema Teatro Épico, mesmo dedicando-se a explicar toda relação que o baliza: a importância do gestus, que tipo de ruptura causa e quais elementos ele agrega para o seu mecanismo (como as técnicas visuais das projeções, facilitados pelo advento do cinema) além de refletir sobre a postura arrogante da crítica especializada, onde são defasados todos os recursos para se avaliar a qualidade deste tipo de espetáculo. A partir daí as experimentações brechtinianas avançaram de forma que Benjamin não pode verificá-las, pois o desespero de ser capturado pela polícia nazista impulsionou o filósofo e pensador alemão ao suicídio.
A compreensão de Walter Benjamin sobre o Teatro Épico (a organização teórica que permitiu às suas reflexões obterem um caráter ensaístico) é um excelente paradigma a ser lido e relido diversas vezes, obtendo a cada nova leitura um novo entendimento ou um novo esclarecimento sobre este início das atividades teatrais de Brecht, pois concluído com as palavras de Theodor Adorno, “compreender passa a ser apenas o processo de destrinchar a obra em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado momento, ou pelo menos reconhecer os impulsos psicológicos individuais que estão indicados no fenômeno” (Adorno: 2003, 23).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. SP: Duas Cidades, 2003.
BENJAMIN, Walter. O que é teatro épico? In: Obras escolhidas I. SP: Brasiliense, s.d.
DUVIGNAUD, Jean. Sociologia do Comediante. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

17.6.08

A indiferença da academia pelo presente

A difícil crítica do presente

Por Beatriz Resende[i]


No último maio, chegou ao fim a importante revista argentina Punto de Vista, depois de 30 anos de crítica combativa, servindo como referência decisiva em diversos momentos da vida latino-americana. Sua editora, intelectual que procurou sempre juntar literatura e política, Beatriz Sarlo, afirma que a revista – que sempre foi absolutamente independente não só em suas posições como em suas formas de sustentação –não passa por nenhuma dificuldade econômica. Provavelmente seu fechamento precipitou-se pelas crises internas que vive desde que dela se afastou Carlos Altamirando e outros, em 2004. Mas aqui, o que vem ao caso notar, são algumas das afirmações de Sarlo no editorial do número 90, o último: “Final”. Aí aparecem as dificuldades representadas pelo que foi também o grande mérito da publicação por todos estes anos: a sintonia crítica com o presente, com o imediato. Foi assim que se ocupou da literatura argentina em relação com a história recente, o que, segundo Sarlo, hoje não é novidade, mas o foi nos anos 80, quando a abordagem se tornou, para ao grupo, uma chave interpretativa. Falaram de cidade e cultura quando o tema ainda não estava na moda e usaram como referência teórica Raymond Williams, Juan José Sauer e Sebald quando tais autores ainda não circulavam efetivamente no universo da crítica.
O que Beatriz Sarlo assegura ser decisivo para uma publicação dedicada à cultura e à política me parece ser decisivo para qualquer realização do exercício crítico. Diz a criadora da revista: “Pensé ( y pinso hasta hoy) que es preferible que uma revista se equivoque a que permanezca igual a si misma quando las cosas cambian o quando los temas se banalizan”.
Sem dúvida é este o risco e o fascínio, a possibilidade de equívoco ou de contribuição modificadora que a crítica literária corre quando se ocupa, sobretudo, de autores novos, alguns ainda em formação. É o risco de se deslocar do campo antes de mais nada seguro do cânone – não apenas para afirmá-lo, mas mesmo para questioná-lo – para uma zona de apostas, do perigoso jogo de tentar ler o futuro no presente que é se apresenta ao leitor iniciado. Porisso, talvez, a crítica acadêmica – justamente aquela que é praticada no espaço seguro das universidades, onde, convenhamos, temos hoje a liberdade de dizermos o que quisermos – pouco se ocupe no contemporâneo, do imediato. De que outros espaços dispomos, então? Revistas literárias, de crítica, de reflexão, praticamente inexistem. Aquelas que poderiam ter a segurança se estarem ligadas às universidades vivem dificuldades cotidianas que tornam sua publicação tão lenta que, ao circularem, aquele que aí visitar o novo, o que merece provocar o debate dentro da produção cultural do presente, já aparecerá atrasado. Ou ficará restrito ao pequeno âmbito de circulação a que a tiragem limitada obriga. Restam os suplementos dedicados à arte e cultura, uns pouco e heróicos sobreviventes, onde o número de caracteres destinados a cada colaborador diminui a cada número. É preciso sobreviver, competindo com os cadernos de automóveis, culinária e vinhos ou inutilidades, artigos bem mais vendáveis. E antes a culinária do que as celebridades!
A tendência crítica é ver o passado, seja pela memória seja pela história, como conflituoso, solicitando releituras ainda por serem feitas, e, por isso mesmo, fértil. E realmente o é. À produção literária do presente resta, o mais das vezes, a indiferença.
Não é apenas por acreditar na força da ficção brasileira contemporânea que penso que ela deve ser conhecida, lida, estudada, fruída, mas sim porque acredito que o jovem autor, aquele que busca uma experiência literária inovadora ou as vozes que apenas recentemente se apropriaram do texto literário – seja o que for que se entenda por literatura hoje –merecem e precisam do debate.
Se nos detivermos sobre a produção desta década, percebemos as múltiplas possibilidades que têm se afirmado com grande conpetência, mas também já podemos vislumbrar alguns impasses. O retorno dominante à narrativa da realidade já mostra as ciladas que oferece junto com o interesse imediato, a identificação fácil ou a possibilidade de um texto literário migrar com facilidade do livro para outras mídias mais rentáveis. O excesso de metalinguagem, a paródia que se revela com obviedade ameaçam mesmo autores de escrita sofisticada. A belle écriture do texto cansa tão rapidamente quanto a vulgaridade compulsivamente repetida. O texto de pouco fôlego é um intervalo curioso, mas perde a força se for uma constante. Por outro lado, a aposta em aspectos “profanadores”, para usar a expressão de Giorgio Agamben, muitas vezes cessa ao primeiro oferecimento de uma grande editora, aquela que se interessara justamente pelo valor da profanação.
Apontar impasses é a contribuição que a crítica pode oferecer. Para esse exercício político do fazer literário, no sentido que Jacques Rancière dá à política da literatura, como uma maneira de intervir na partilha do sensível que define o mundo que habitamos, é preciso, antes de tudo, correr o risco que falar do presente, do imediato, oferece.
Como sempre se perde e sempre se ganha alguma coisa a cada virada no mundo da cultura artística, se a crítica acadêmica perde espaço a cada recusa que um autor recebe ao exibir, quase como num gesto obsceno, seu volume de ensaios diante de um editor, outros espaços vêm surgindo no universo livre da web. Até agora, são principalmente os jovens (alguns já não tão jovens) autores que têm se utilizado desta ferramenta, para divulgar seus trabalhos, partilhar experiências e trocar críticas na formação de uma nova forma de “vida literária”. Por mais que o incomparável perfume do papel faça falta a nossos narizes viciados, vale a pena tentar ocupar esses novos espaços.No mínimo, os críticos logo terão respostas de algumas vozes arrogantes e outras carentes de diálogo, cairão na rede de discussões por vezes divertidas, receberão sugestões daquele mago da Amazon que lê nossas aspirações intelectuais mais íntimas e uma inevitável boa quota de spans.

[i] Beatriz Resende é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, professora da UNIRIO e pesquisadora do CNPq.