Por Pedro Alonso
O filósofo, sociólogo e crítico alemão Theodor Adorno (1903/1969) defende em seu Ensaio como forma a fluidez e a liberdade de uma prática literária que não almeja revestir-se de um rigor científico. Segundo o autor, “o ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho” (Adorno: 2003, 16-17). Sem a pretensão de moldar um objeto às normas e dogmas pré-estabelecidos, o ensaio rejeita, portanto, um enquadramento rigoroso às formas definitivas e fechadas, característicos do cientificismo acadêmico, pois “o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva (...) ele recua assustado diante da violência do dogma” (Adorno: 2003, 25). Baseado nesta premissa, e para a condução das reflexões sobre o tema proposto, foi escolhido como objeto de reflexão e análise o ensaio do também alemão Walter Benjamin (1892/1940) intitulado O que é o Teatro Épico: um estudo sobre Brecht, onde é possível verificar o esforço do autor de compreender e registrar o momento histórico que instala, no cenário artístico da Alemanha no final da década de vinte, de uma nova prática teatral calcada na desestruturação de formas pré-estabelecidas e estratificadas entre palco e platéia, texto e representação, atores e diretores, representativos de uma ordem social caracteristicamente burguesa. Trata-se de averiguar um momento específico, gerador dos primeiros experimentos textuais e cênicos de Brecht, o qual intitulou de Teatro Épico.
Adorno afirma que o objeto de estudo de um ensaísta parte sempre de um referencial anterior, algo que já foi escrito ou inventado. O papel deste último, portanto, é aprofundar, destrinchar, trazer a luz novos conceitos a cerca do que, outrora, fora observado ou atestado primeiramente: “Ele (o ensaio) não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio, superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito” (Adorno: 2003, 17). Parece que Benjamin segue a cartilha do companheiro e membro da Escola de Frankfurt, pois as observações que desenvolve em torno das formas do teatro épico são indagações de natureza empírica. O autor inicia seu ensaio problematizando a relação existente que se verifica no espaço sagrado da encenação: o palco. Primeiro porque Benjamin questiona o verdadeiro caráter das relações funcionais entre o teatro político e a platéia que a assiste. O aparelho teatral não se modifica. A disposição palco-platéia não se desestrutura e a frontalidade do palco italiano continua sendo o suporte para o desenrolar de fábulas com teor propagandista, limitando aquele a franquear (termo é utilizado pelo próprio Benjamin em seu ensaio) determinados procedimentos característicos do teatro concebido para uma platéia essencialmente burguesa. As encenações brechtinianas não permitem a instalação de um enredo coeso, harmônico, estruturado dentro do princípio das três unidades. Nas palavras do autor, “Uma de suas principais funções é a de interromper a ação, e não ilustrá-la ou estimulá-la. E não somente a ação de um outro, mas a própria” (Benjamin: 1985, 80). Se para retratar a realidade, a cena realista abre mão de recursos teatrais que não devam remeter ao espectador a lembrança de que está assistindo a uma representação, dentro de um espaço propício para tal finalidade, separado da platéia pela invisível quarta parede, o teatro épico, do contrário, “conserva o fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva”. Ele precisa dessa atenção constante do espectador para que este próprio possa ter os meios de tomar uma posição acertada sobre os infortúnios dos personagens que vê representado a sua frente, o que Brecht irá denominar de “atitude crítica do espectador” (Duvignaud: 1972, 30). Mais uma vez recorro a Adorno, onde determina que num ensaio, “o pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que e capaz de reduzí-lo a uma outra coisa (...) ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha” (Adorno: 2003, 27). Nota-se que neste belo exemplar de ensaio elaborado por Benjamin, num momento de forte turbulência política, ele não pretendeu esgotar o tema Teatro Épico, mesmo dedicando-se a explicar toda relação que o baliza: a importância do gestus, que tipo de ruptura causa e quais elementos ele agrega para o seu mecanismo (como as técnicas visuais das projeções, facilitados pelo advento do cinema) além de refletir sobre a postura arrogante da crítica especializada, onde são defasados todos os recursos para se avaliar a qualidade deste tipo de espetáculo. A partir daí as experimentações brechtinianas avançaram de forma que Benjamin não pode verificá-las, pois o desespero de ser capturado pela polícia nazista impulsionou o filósofo e pensador alemão ao suicídio.
A compreensão de Walter Benjamin sobre o Teatro Épico (a organização teórica que permitiu às suas reflexões obterem um caráter ensaístico) é um excelente paradigma a ser lido e relido diversas vezes, obtendo a cada nova leitura um novo entendimento ou um novo esclarecimento sobre este início das atividades teatrais de Brecht, pois concluído com as palavras de Theodor Adorno, “compreender passa a ser apenas o processo de destrinchar a obra em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado momento, ou pelo menos reconhecer os impulsos psicológicos individuais que estão indicados no fenômeno” (Adorno: 2003, 23).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. SP: Duas Cidades, 2003.
BENJAMIN, Walter. O que é teatro épico? In: Obras escolhidas I. SP: Brasiliense, s.d.
DUVIGNAUD, Jean. Sociologia do Comediante. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/E/escola_frankfurt.htm, consultado em 28/06/2008.
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