UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

28.8.08

Na ativa!!!

Esse blog não pode parar...É o espaço para nossas reflexões, indignações, comentários e dicas de teatro, nossa arte tão apaixonante quanto polêmica.
"Postêmo-nos!"

9.7.08

PETER BROOK: UM HOMEM DO SÉCULO XXI

Por Verônica Fernandes


“O mundo de hoje nos oferece novas possibilidades. Este grande vocabulário humano pode ser enriquecido por elementos que nunca estiveram juntos no passado. Cada raça, cada cultura pode trazer sua própria palavra para uma frase que una a humanidade. Não há nada mais vital para a cultura teatral do mundo do que o trabalho conjunto de artistas de diferentes raças e origens.”
Peter Brook[1]

Como estudante de teatro, uma de minhas grandes inquietações, é a comunicação com a sociedade. De que forma no mundo em que vivo: interligado e ao mesmo tempo individualista, posso me expressar sem ter a sensação de que a minha tentativa é sem sentido ou inútil, como posso ter como meio de expressão artística uma arte que é prioritariamente coletiva num mundo individualista? Durante o percurso deste semestre, tive a oportunidade de entrar em contato com a estética de Kant, e começar a compreender a noção de Belo, e perceber o quanto minha idéia acerca do Sublime era equivocada, essas questões desenrolaram um verdadeiro novelo de idéias e reflexões acerca da arte, me senti impelida a entender aquele com quem eu quero falar. Ao perceber que não basta saber que o homem contemporâneo é individualista, fui em busca de compreender o processo pelo qual estamos passando ao longo deste “grande período histórico”, para tanto, se tornou essencial entender o sistema de comunicação de nosso tempo que está dentro do nosso quarto, a internet e seus reflexos no homem. Continuando o semestre, encontrei os readymades de Duchamp, com seu caráter libertador em torno do pensamento artístico, transpondo os limites da arte. Entrei em contato com o conflituoso Artaud, questionando as formas teatrais, exatamente no que se refere à capacidade ou a incapacidade de se comunicar com a “massa” e entre todas essas questões, a performance já se mostrava a mim como uma linguagem extremamente atual, por suas características conceituais; estreitamento entre arte e vida e uma decorrente interatividade, porém com características individualistas. E é nesse momento que encontro Peter Brook, considerado o maior encenador do século XX, mas que a mim se revelou ainda muito relevante hoje, no século XXI, pois ao ler “O Peixe Dourado”, ensaio que compõe seu livro “A Porta Aberta”, compreendi a comunicação como sendo sim, uma das grandes chaves da expressão teatral. Pelo fato de que, por mais que estejamos vivendo e nos relacionando intermediados pela tecnologia sempre haverá algo que liga as pessoas, é a necessidade do contato humano verdadeiro e no teatro esse contato é a condição para a arte acontecer, no “momento presente” que segundo Peter Brook é um mistério. É como se nesse momento da minha “errância teatral” eu me reencontrasse em Peter Brook, com seu multiculturalismo, completamente de acordo com a realidade de um mundo interligado, procurando se comunicar, na superfície de uma “base comum”. “[...] sentimento que conduz à paixão, paixão que transmite convicção, convicção que é o único instrumento espiritual capaz de fazer os homens se preocuparem uns com os outros.” [2].
Assim, parto da comunicação para tentar percorrer pelo ensaio de Brook, pois além de ser o ponto que converge os meus questionamentos, é também a questão que permeia todo o ensaio, quando fala na rede de pesca e o peixe dourado, ao citar Shakespeare e ao falar sobre o nosso tempo. Na busca pela comunicação, Peter Brook coloca que o “momento presente” compreende uma “experiência coletiva”, e para isso é necessário que haja uma “base comum” para que cada indivíduo na platéia possa compartilhar essa experiência que se dá em diversos níveis de compreensão. Refletindo sobre a experiência coletiva, percebo que o termo multiculturalismo termina por reunir em seu conceito, os sentidos de: momento, coletividade, interatividade e heterogeneidade, porque quando trabalha com a matéria-prima do teatro, o ator, oriundo de diferentes lugares, com diversos referenciais de cultura, modos, crenças, Brook favorece a coletividade, caminhando através da diferença, em busca da comunicação em direção a uma “base comum”.
Para Peter Brook, “Shakespeare não faz concessões em nenhum dos extremos da escala humana. Seu teatro não vulgariza o espiritual para que o homem comum o assimile mais facilmente, nem rejeita o sujo, o feio, o violento, o absurdo e a gargalhada vulgar. Passa de um a outro sem esforço, momento a momento, enquanto numa grande investida vai intensificando a experiência, até que toda a resistência explode e a platéia se defronta subitamente com um instante de aguda percepção da textura da realidade.”[3], enxergo nessa colocação a capacidade, tão anunciada, que Shakespeare tem de comunicar com todos os universos sociais, entendo como conseqüência natural, a freqüência do autor na estrada artística que o encenador trilha. Esta mesma citação me remete a um outro ponto abordado através da metáfora de “O Peixe Dourado”, onde Brook se refere ao trabalho do ator, como sendo o mesmo de um pescador que tece a sua rede, o que vai determinar que tipo de peixe irá pescar, é o seu “esmero” a sua “intenção”. Construindo a textura da obra teatral o ator tem em mãos a responsabilidade de se comunicar e ser o interlocutor de toda uma equipe, idéias coletivas voltadas para uma coletividade e ao mesmo tempo é a idéia de cada artista envolvido com a obra, comunicando a cada indivíduo presente na platéia. Novamente eu volto a multicultura, pois seu princípio viabiliza a concretização de uma experiência coletiva preservando, não o individualismo, mas a individualidade. Ao falar a respeito da constatação, quando em viagem pela Europa, de uma falta de interesse do homem pelo teatro, pondera que a obra teatral precisa acompanhar a “pulsação de seu tempo”, então depreendo que “o momento presente” além de significar o instante da obra, também ganha o sentido do agora, o momento que estamos vivendo, é o nosso tempo, o nosso presente.
O que me faz refletir sobre o século no qual vivemos, onde encontrei na performance uma linguagem que sintoniza com nosso “momento presente”, e o uso de multimídia, se revela como um dos pontos chave, totalmente em acordo com esse sujeito contemporâneo interligado a todo o tempo. Não é de hoje, que Peter Brook, experimenta uma linguagem que não é cinema, mas também não pode ser considerado como teatro pelo simples princípio de que para o teatro acontecer é necessário, o contato entre as pessoas. Ao repensar a peça com essa finalidade, ele transmuta a linguagem teatral, tentando manter a idéia da encenação, o resultado estará imortalizado através da tecnologia, disponível em todo o mundo através dos DVD´s e também da internet. Mas o que me chama a atenção para este trabalho é que ao transmutar a linguagem teatral, será que Peter Brook não cria uma espécie de “performance”, da obra original?

Enquanto forma o ensaio de Brook, se revela livre, como um ensaio deve ser, ele foi escrito para ser falado, desenvolve seu discurso, da mesma forma que defende o espetáculo teatral: uma sucessão de momentos que levam a um momento de maior interesse. E nesse jogo, que ele estabelece com os ouvintes/leitores, ele revela um pouco sobre o teatro do qual está falando. Um homem da prática, que reflete o teatro e o vivencia, não percebo o que vem em primeiro lugar, se suas reflexões teóricas sendo postas em teste na prática, ou se sua prática é que produz as reflexões teóricas. É uma sucessão entre a experiência prática e reflexiva, uma após a outra, construindo a “textura” do seu fazer teatral.

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BROOK, Peter. “A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

[1] “O Peixe Dourado” In. ___A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro; pág. 80.

[2] Idem; pág. 68.
[3] Idem; pág. 73

Performance: linguagem de vida e arte

Por Verônica Fernandes

“Se a sociedade de amanhã ainda considerar que a experiência estética é a única capaz de garantir uma experiência individual livre e reativa com o mundo, e realizar essa experiência com os meios de seu sistema, a arte já não se fará com o pincel ou a argila, mas, enquanto memória e pensamento da arte, influirá positivamente sobre os novos modos de experiência estética. Lembremos que a arte, em todo o seu passado, foi um modo de experiência individual, um trabalho manual transposto numa comunicação conceitual. Numa sociedade de cultura de massa, o pensamento e a memória da arte também poderão ser, se estiver salvaguardada a liberdade dos indivíduos, os impulsos criativos que, provindo das profundezas da história, haverão de gerar uma experiência individual recapituladora, porém não destruidora, da experiência coletiva.”
Giulio Carlo Argan[1]

Este parágrafo final do capítulo “A crise da obra de arte como ciência européia” de “A arte moderna” me faz pensar sobre as possibilidades do homem se expressar artisticamente que se revelaram no século XX, e de que maneira elas se refletem na arte contemporânea.
No ano de 1917, Marcel Duchamp “escolheu” um mictório de louça utilizado em sanitários masculinos, e enviou ao “Salão da Associação de Artistas Independentes”, com o sugestivo título de Fonte, mais tarde nos anos 50 repetiu a experiência e nesse momento “sua escolha” foi instituída como obra de arte. Quando propôs o ready made, Duchamp estava lançando as bases para uma aproximação radical entre vida e arte e rompendo com seus limites, quer dizer trazendo a noção de que arte não estaria limitada ao ato de “fazer”, de “construir”, mas que poderia abranger o pensamento, a “escolha” do sujeito. Esse deslocamento do objeto cotidiano, “a priori” não reconhecido como artístico, para o campo das artes, para muitos significa radicalizar um gesto banalizante da arte, no entanto, em “Kant depois de Duchamp”, Thierry De Duve afirma que “Com o readymade, a passagem do julgamento estético clássico para o julgamento estético moderno é trazida à tona, com a substituição de “isto é belo” por “isto é arte”. Afirmar que uma pá de neve é bonita (ou feia) não a transforma em arte, e a frase mantém seu caráter de julgamento estético clássico de gosto, referente ao design da pá de neve.” Essa escolha então se mostra como um olhar do artista, em direção à vida cotidiana, um novo olhar para o mundo do qual faz parte, talvez eu possa afirmar que é uma resposta do artista as mudanças na ordem econômico/social que se estabeleciam e se faziam irremediáveis. Mas o aspecto que me interessa é seu caráter libertador em torno do pensamento artístico e a transposição de limites dos territórios da arte; a invenção de novos sentidos para o mundo estimulando a nossa imaginação.
Deste modo percebo que a performance é uma linguagem que parece traduzir muito bem o deslocamento de “Isto é belo” para “Isto é arte” colocado por De Duve, e o estreitamento entre arte e vida. Segundo Richard Schechner[2], “no século XXI as pessoas têm vivido como nunca antes, através da performance”, para ele a performance é um ato que está relacionado à: “Ser”, “Fazer”, “Mostrar-se fazendo” ou “Explicar ações demonstradas”. Schechner traça um paralelo entre o ato performático artístico e cotidiano. Na vida se trata de um “comportamento restaurado” que requer anos de treinamento do indivíduo, desde gestos cotidianos simples, “como escovar os dentes”, até ações mais complexas que exigem de nós uma constante reflexão, como nos relacionar socialmente. O ato performático artístico também exige do sujeito um constante treinamento e passa por uma reflexão. Outro aspecto que reforça a idéia de Schechner, do homem hoje viver através da performance, é o seu convívio com os recursos midiáticos, “performamos” na internet através das webcams, youtube e orkut, assistimos à “notícias-show”, “restauramos comportamentos”. Renato Cohen esclarece em seu, “Performance como linguagem” que “A performance, na sua própria razão de ser, é uma arte de fronteira que visa a escapar às delimitações, ao mesmo tempo em que incorpora elementos das várias artes” o uso de multimídia, e recursos tecnológicos estão presentes reforçando seu aspecto de “arte de fronteira”, num contínuo movimento de ruptura com a arte estabelecida. É válido lembrar que o ato performático, enquanto expressão artística está ligado aos happenings, que tem no estreitamento entre arte e vida um de seus ideais, mas Renato Cohen esclarece as diferenças entre as duas linguagens, afirmando que a performance caminha em direção a um “aumento de esteticidade obtida através do aumento de controle sobre a produção e a criação – em detrimento de espontaneidade e um aumento de individualismo – com maior valoração do ego do artista – em detrimento do coletivo e do social, privilegiados no happening”. Sua linguagem abarca elementos que sintonizam com o mundo contemporâneo; o uso de novas mídias, uma estrutura fragmentada – que poderia refletir a fragmentação do próprio homem – expressão cênica e plástica, pluralidade, e um caráter mais “individualista”, me parecem de acordo com o homem que ao interagir com o mundo através da internet, se isola na frente de seu computador. Uma última citação de De Duve, “A antinomia do julgamento estético moderno está, portanto, resolvida. Tese. A afirmação “isto é arte” não se baseia no conceito de arte, mas no sentimento estético/artístico. Antítese. A afirmação “isto é arte” assume o conceito de arte, assume a Idéia estético/artística. Na tese, “conceito” refere-se à um conceito determinado que deveria ser afirmado teoricamente, e “sentimento”, a todos os sentimentos envolvidos no amor à arte, Na antítese, “conceito” não se refere a um determinado conceito de entendimento, mas, sobretudo, à Idéia indeterminada de razão.”
“Aumento de esteticidade”, “sentimento estético/artístico”, “idéia estético/artístico”, essas colocações me fazem refletir a arte contemporânea com toda a sua pluralidade. Se o artista, enquanto sujeito crítico, pode criar sua obra a partir de um conceito, e o belo já não é mais o centro da questão, o artista performático seja ele oriundo das artes plásticas ou das artes cênicas, estará criando, não necessariamente numa tela (no caso do artista plástico) ou através de um personagem (no caso do ator). Poderá fazer-se parte de sua obra, pois o que ele tem a comunicar é o seu pensamento crítico em relação ao que sua percepção está captando do ambiente social. Da sua obra de arte faz parte o ser que é; determinado por sua visão de mundo, o que ele enxerga, enquanto homem pertencente a essa sociedade, como se relaciona a partir de sua visão e como transforma isso em arte através de si. Vida e arte com limites estreitos, numa linguagem da qual a própria vida já se apropriou, a obra de arte refletindo o entendimento, ou o não-entendimento acerca do sujeito contemporâneo, seu modo de vida e as mudanças que o momento em que vivemos provocou em nossas percepções.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. Revista do Mestrado em História da Arte EBA. UFRJ, 2º Semestre 1998.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo. Ano II, 2003, nº12
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992.

[1] "A crise da obra de arte como ciência européia" In: ___ Arte moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992. pág. 593

[2] In: O que é performance? Revista O Percevejo. Ano II, 2003, nº12. pág. 25.

5.7.08

Na BR-3

Por Raphael Cassou
“A gente corre na BR-3
A gente morre na BR-3
Há um foguete
Rasgando o céu, cruzando o espaço
E um Jesus Cristo feito em aço
Crucificado outra vez
E a gente corre na BR-3
E a gente morre na BR-3
Há um sonho
Viagem multicolorida
Às vezes ponto de partida
E às vezes porto de um talvez
E a gente corre na BR-3
E a gente morre na BR-3
Há um crime
No longo asfalto dessa estrada
E uma notícia fabricada
Pro novo herói de cada mês.”

BR-3: Música de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar


Cena de BR-3 no rio Tietê em São Paulo.

Existem pontos em comum em uma cidade planejada, uma cidade fronteiriça e um bairro periférico da maior cidade do país? Partindo desta indagação o Teatro da Vertigem iniciou a sua pesquisa em 2004 em busca da nova peça da companhia, o espetáculo BR-3.

O Teatro da Vertigem notabilizou-se por apresentar suas peças em espaços que fogem ao convencional. O espaço utilizado pode ser hora uma igreja (Paraíso Perdido, 1992), um hospital (O Livro de Jó, 1995) ou um presídio (Apocalipse 1:11, 2000). Antonio Araújo, diretor do grupo, acredita que a força dramática de seus espetáculos residem na potencialidade que os espaços inusitados trazem à encenação. Além disso, a forma como ele divide a autoria dos espetáculos com seus atores, dramaturgos e demais criadores merece destaque. O processo de criação é marcado por longas fases de pesquisa que servem de laboratório de experimentação para toda a equipe.

O mais recente trabalho do Teatro da Vertigem – BR-3 – foi o resultado uma extensa verificação dos pontos que marcam a identidade ou a não-identidade nacional de três lugares distintos, porém unidos por um mesmo radical – “BR”. Brasilândia, bairro periférico da cidade de São Paulo foi o primeiro local escolhido pelo grupo. Nesta localidade os artistas entraram em contato com a comunidade e tentaram entender como esses moradores se sentiam em relação à uma identificação nacional. O que pode ser percebido é que há um grande sentimento de não pertencimento por parte daquela comunidade num conceito macro de cidadania. Os habitantes desta comunidade sequer possuíam a noção de periferia, quiçá o de identidade nacional. Os artistas que se deslocaram para Brasilândia propuseram oficinas artísticas para os moradores com o intuito de tentar se inserir no pensamento e na vivência desta comunidade.

Bernardo Carvalho, dramaturgo do Vertigem, relata em seu texto “ Eu vivo neste mundo” o contato feito por ele, dentro da proposta de vivenciar o dia-a-dia de Brasilândia. A Bernardo coube a tarefa de visitar uma igreja evangélica local. Sua incumbência acabou culminando em uma das cenas mais interessantes de BR-3. Carvalho relata que ao entrar na tal igreja com a finalidade de apenas observar o culto e analisar o comportamento dos freqüentadores, acabou se envolvendo em uma situação inusitada. Ele acaba como o único espectador presente à celebração e é coagido de forma agressiva pelo pastor e a evangelista a se converter à religião.

“(…) Sempre achei que as igrejas evangélicas tinham vingado no Brasil por terem assumido o vácuo deixado pelo Estado entre os chamados excluídos. Nunca tinha me passado pela cabeça que a estratégia é a do medo e da coersão, a mesma usada pela igreja católica em meio a barbárie da Idade Média, sendo que agora nem precisava haver religiosidade. Quem entra em busca de acolhimento espiritual é recebido com ameaças. Do lado de fora estava ruim? Seja bem-vindo, aqui dentro não é diferente.
Eu estava irredutível. O pastor apelou: “Deus criou a autoridade. Não basta obedecer à polícia lá fora. Tem que obedecer ao pastor e à evagelista aqui dentro, representantes da autoridade de Deus”. Ou seja: este é o mundo do terror em que você sobrevive acuado entre a autoridade do tráfico, da polícia e da igreja. “Contra essas coisas não há lei.” Nem a quem recorrer.
Já fazia mais de uma hora que eu estava ali. O pastor me mandou fechar os olhos de novo. Me levantei e saí, enquanto ele praguejava:”Você não pode sair. Não fez a oferta!”.(…)”

O segundo passo do trabalho do Teatro da Vertigem foi percorrer, durante quarenta dias e mais de quatro mil quilômetros de estrada, cruzando o país unindo o três pontos investigados. O fim da jornada se deu em Brasiléia, cidade no interior do estado do Acre, fronteira com a Bolívia. Nesta localidade a trupe do Vertigem pode conhecer uma das regiões mais híbridas do país no que se refere à identidade cultural, tanto religiosa, quanto na língua esta região resiste a uma identidade estável. O ponto alto da viagem culmina no Centro Daimista Santo Alto de mestre Irineu, onde os atores e técnicos da equipe participaram de uma cerimônia do Daime.

Na passagem por Brasília, o destaque ficou por conta do que Bernardo Carvalho apontou como “ Disneylândia mística”. Isso porque a cidade é pontuada pela diversidade religiosa e por abrigar inúmeras seitas que cultuam desde a deusa greco-romana Diana até a mistura de candomblé com cultos indígenas.

Deste caldeirão de experiências ecléticas nasce a dramaturgia de BR-3. O local escolhido para a encenação, até mesmo para não fugir à característica do Vertigem, foi o leito do, poluído, rio Tietê em São Paulo. Sílvia Fernandes em “Cartografia de BR-3” a esse respeito aponta:

“(…) a ocorrência simultânea de diversas cidades no mesmo espaço urbano, procedimento que a dramaturgia de Bernardo Carvalho acentua no texto de BR-3 e a direção de Antonio Araújo intensifica no Tietê, ao criar uma espécie de heterotopia no percurso espetacular, justapondo uma série de lugares estranhos uns aos outros, estranhamento potencializado pela deterioração do rio. Brasília associada ao monumental e aos viadutos, Brasilândia abrigada sob as pontes e Brasiléia dispersa nas margens são espaços heterodoxos, forçados a conviver no mesmo leito-estrada, e absolutamente outros em relação às cidades reais a que se referem e de que falam. Filtrados pelo olhar coletivo e deformados por essa modalidade contemporânea de representação, fragmentária e explodida, tornam-se lugares de “desvio”, irreconhecíveis em sua identidade original.(…)”


O ROTEIRO DE BR-3

Temporada carioca de BR-3. Riocenacontemporânea 2007.


Jovelina, grávida de um filho, deixa o Nordeste para procurar o marido que trabalha na construção de Brasília, em 1959. Ao saber de sua morte no canteiro de obras do Congresso Nacional, e a conselho de uma médium local, Zulema Muricy, embarca em um ônibus com destino a São Paulo. Muda de vida e de nome, e em dez anos passa a ter o comando do tráfico no bairro da Brasilândia, agora sob o pseudônimo de Vanda. Tem dois filhos que se envolvem amorosamente em uma relação incestuosa, Helienay e Jonas, herdeiro dos negócios da mãe. Convertido por Evangelista, Jonas passa a ser membro da igreja local e se casa com uma fiel, com quem tem dois filhos, Patrícia e Douglas. Em 1980, Vanda é assassinada, em uma disputa familiar a mando do Dono dos Cães, um antigo policial interessado no controle da área e agora amante de Helienay. Jonas é preso e mantido no cárcere pelo pastor do bairro, comparsa do ex-policial, que lhe revela o destino da mãe e a suposta morte dos filhos em um incêndio criminoso, parte da mesma ação de extermínio de sua família, planejada para evitar uma possível vingança. No entanto, Evangelista descobre o cativeiro de liberta Jonas. Sem saber que os filhos foram salvos, ele parte para uma longa viagem pelo país e funda uma seita em um seringal nas proximidades de Brasiléia. Em 1997, dezessete anos depois de ser adotado e criado no estrangeiro, Douglas volta a Brasilândia à procura da família. Orientado pela Evangelista, parte em busca do pai na fronteira do Acre. Quarenta dias depois, sua irmã Patrícia foge de um reformatório e é forçada a cuidar de Helienay, agora drogada e decrépita, de quem ouve sua própria história. Ao saber da identidade de Patrícia, o Dono dos Cães, que tomara conhecimento das intenções de Douglas, decide matá-lo usando a irmã como instrumento. Convence a menina, que não o conhece de que o Dono dos Cães foi para a fronteira com o propósito de matar seu pai. Patrícia não sabe que o suposto matador é, na verdade, seu irmão Douglas. O reencontro de Douglas com os filhos é o desfecho da trama.



VISÃO PESSOAL DE BR-3



Os viadutos paulistas convertidos em Congresso Nacional.


Era uma noite fria de domingo na capital paulistana e estávamos lá, em frente ao Memorial da América Latina, no bairro da Barra Funda em São Paulo, um grupo de cerca de 100 pessoas a espera dos ônibus da produção do Teatro da Vertigem que nos levaria até o local da encenação da mais recente peça da trupe, BR-3. A expectativa era grande afinal, não é sempre que se tem a oportunidade de assistir a um espetáculo dentro do rio mais poluído do país, o rio Tietê.
Aquela seria uma oportunidade única, pois seria a última apresentação de BR-3 em São Paulo, pois a produção não tinha condições de continuar a se apresentar no Tietê devido a problemas técnicos e orçamentários para manter a encenação.

O ônibus chegaram pontualmente no horário marcado. Embarcamos e a tensão aumentou, isso porque não sabíamos direito de como seria assistir a uma peça de teatro dentro de um rio. Teríamos que colocar os pés na água? Sentaríamos na margem do rio?
E a sujeira? E a poluição? O odor? Tudo isso passava pela minha cabeça no trajeto.
Chegamos em um pátio, no que parecia ser o local da administração do rio. Era um local deserto e escuro. Não dava para enxergar muita coisa.Descemos do ônibus e fomos “ abandonados” ali naquele local. Alguns minutos ali parados sem saber para onde ir e em seguidas escuto tiros ao que parece de revólver. Seria esse o início da peça? Como morador da cidade do Rio de Janeiro, a pergunta não me pareceu tão estapafúrdia. Para minha sorte era sim a apresentação começando. Fomos então encaminhados para uma embarcação que estava ancorada em um pequeno cais por uma mulher que se vestia tal qual uma executiva, ao menos era o que me parecia. Mais tarde fiquei sabendo que se tratava da personagem Evangelista. Entramos no barco e nos acomodamos nas cadeiras, mas isso era algo que seria impossível de fazer, se quiséssemos acompanhar a peça no seu todo.
As cenas ocorriam em todos os lugares. Na parte de frente do barco, nas laterais, no fundo e fora do barco, lógico.
As cenas eram todas conduzidas por um barqueiro em uma lancha que servia de “guia” para nossa embarcação. A cada nova cena, éramos posicionados em um novo cenário que se multiplicavam ao longo do rio. Fazíamos, ao meu ver, uma espécie de via crucis, pois a sensação que se tinha era a de estarmos passando por estações semelhantes às vividas na paixão de Cristo. Visualmente, os cenários eram muito bonitos, mesmo construídos com materiais simples, se encaixavam perfeitamente à encenação. Tudo contribuía para a grandiosidade da peça. Concordo com Sílvia Fernandes que diz em seu texto Cartografia de BR-3. Ela afirma que os detritos e a deterioração do Tietê, potencializam a ação dramática. É impossível ficar indiferente, em todos os aspectos, quando se está dentro do rio mais fétido e poluído do país. Tudo incomoda, até para narizes menos sensíveis o odor acaba por te incomodar em algum momento e esse elemento só reforça o clima que o Teatro da Vertigem quer instalar em seus espectadores. Mas mesmo assim, há algo de poético neste ambiente de degradação.
Outro dado que me foi extremamente marcante, foi a habilidade do ator que representava o barqueiro. Isto porque além de atuar, ele ainda tinha que se preocupar com a condução da embarcação.
Fiquei muito grato pela oportunidade de experienciar algo tão diferente do cotidiano teatral, O Teatro da Vertigem conseguiu fazer com que nos descolássemos do fato de estarmos dentro do rio Tietê e, através da sua montagem, nos transportar entre as três BRs. Mostra de competência e de Teatro contemporâneo da melhor qualidade.

Desembarque ao fim da apresentação de BR-3. Rio Tietê, São Paulo. Maio de 2006.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



CARVALHO, Bernardo de. Eu vivo nesse mundo. Teatro da Vertigem : BR-3. Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006.

FERNANDES, Silvia. Cartografia BR 3. Teatro da Vertigem : BR-3. Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006.

FERNANDES, Silvia. Notas sobre dramaturgia contemporânea. Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.

4.7.08

Contexto “Base para Unhas Fracas”: Cidade, paisagem, mídia externa

Amigos
Sobre este meu último ensaio postado no blog (por favor, não relacionem este 'último' com o fim das aulas, pois irei continuar postando) gostaria de compartilhar aqui uma resposta do próprio Alexandre Vogler ao texto escrito por mim, além de publicar neste espaço o texto escrito por ele própro sobre o trabalho 'Base para unhas fracas', espalhado pelos murais da cidade. Fiquei muito feliz pelo retorno rápido e pelas considerações dele sobre meu ponto de vista.
"Ola Pedro. Valeu, mesmo, pelas considerações. Achei o texto bem certeiro em suas associações entre o trabalho de rua e a arte da performance. Deve saber que, para o artista, interlocuções como esta é o melhor produto do trabalho. Envio um pequeno texto em que exponho as motivações que me levaram a pensar este trabalho. Abraço. Vogler"
Contexto “Base para Unhas Fracas”: Cidade, paisagem, mídia externa
Existe uma cidade ideal, desenhada por arquitetos e urbanistas. Para além disso, seus habitantes constroem sua visualidade, agindo e permitindo sua transformação espontaneamente sob bases de tolerância e bom senso.

Essa visualidade configura a cultura visual do lugar onde milhares de pessoas convivem. A cultura visual de uma cidade grande é parte efetiva da noção de Paisagem que seus habitantes formam a cerca do lugar onde vivem.

Há tempos se percebeu, que a publicação do Capital só se faria de forma extensa e triunfante caso a imposição de sua marca abarcasse a escala do cotidiano. E a tomada das ruas, como o novo ground simbólico, se deu de forma natural e permissiva pela imagem-mensagem e sua recém-criada ciência.
As relações entre imagem e informação se estreitaram não deixando espaço para a subjetividade e os devaneios que permeiam a contemplação nos espaços de convívio.

Essa transformação foi absorvida e diluída no corpo social. Aos poucos os locais “ociosos” passam a ganhar função, pois, diante de uma cidade que cresce sob parâmetros de produtividade, todo e qualquer mobiliário urbano é passível de transformação, contanto que isso gere dinheiro.
A tomada do espaço público é feita diante de um público amortizado. A privatização do espaço de convívio convive com a subjetividade dos padrões de poluição visual.

O ser humano tolera tudo, desde que aos poucos.

Portanto a transformação do espaço público das cidades, quase sempre, se dá de forma gradual – quase pedagógica - avalizada pelos responsáveis de sua manutenção: os representantes do poder público.

A adequação do mobiliário urbano às regras do capital é um exemplo da transformação da paisagem das cidades em grandes corredores de publicidade estática.
As imagens veiculam aquilo que o espectador-pedestre quer vê. Campanhas publicitárias são precedidas por pesquisas de opinião que estabelecem a conformação dos elementos simbólicos contidos nas imagens.
Isso produz a sensação de prazer e deleite aos consumidores em potencial, capturados pela força de composições sofisticadas e bem produzidas. O julgamento estético recobre o julgamento ético nesse grande campo simbólico que se transformou a paisagem imagética das cidades.

Dessa forma, recorro a uma imagem ordinária que, veiculada junto a um vidro de esmalte de unha, reproduz uma campanha publicitária de um cosmético.
A escolha deste segmento deve-se a fetichização da imagem da mulher em campanhas dessa (e outras) natureza como apelo de consumo. Assim, imprimo as mãos de uma mulher casada, com unhas pintadas de vermelho, sobre imagem manipulada que faz alusão ao órgão sexual feminino.

Parafraseando tais estratégias utilizo, grosseiramente, a imagem feminina alargando os padrões de aceitabilidade e bom senso utilizado nestas campanhas. Viso, com isso, estimular o pedestre amortizado a refletir sobre tais artimanhas utilizadas no mercado de forma subliminar, fazendo com que ele associe o mesmo procedimento em outras campanhas, feitas à vera, mas encobertas por recursos estéticos que ameniza a ilegalidade de suas ações.

A imagem contida, na verdade, trata-se de um conjunto de partes do corpo humano, alterados e reunidos digitalmente com a intenção de simular um conteúdo erótico, belicoso e, até mesmo, escandaloso.
No entanto a associação natural que se faz não condiz com a natureza original da imagem. Como disse, trata-se de uma manipulação, realizada por design gráfico, que trabalhou para a obtenção desse resultado. Resultado que põe em prova os níveis de tolerância do pedestre, solicitando uma reação a esse e outros produtos que cooptaram a paisagem da cidade a revelia do poder público.

Alexandre Vogler. 2008

A intermedialidade no trabalho de Alexandre Vogler e a arte da performance

Recentemente, uma reportagem publicada no jornal O Globo, no suplemento Segundo Caderno[1], chamou atenção pelo conteúdo inusitado, envolvendo o recente e ousado trabalho do professor do Instituto de Artes da Uerj Alexandre Vogler e a reação de pessoas comuns, ao se depararem com o produto exposto pelo artista, em muros espalhados pela cidade. Não se tratava de nenhum cartaz, induzindo a sociedade a consumir absolutamente nada. Era obra de arte exposta como se estivesse dentro de uma galeria de arte.

Um grande cartaz enquadra as mãos de uma mulher e suas enormes unhas vermelhas cobrindo parte de sua genitália. Digo parte, porque as mãos da tal mulher não encobrem totalmente sua vagina, tornando-a visível somente ao transeunte atento que passa e olha detalhadamente o cartaz. Na parte inferior do canto direito da obra, um vidro de esmalte e, logo em seguida, a frase “Base para unhas fracas”. No momento em que posava para fotos em frente à sua criação, uma senhora – que mora num apartamento em frente ao malfadado muro – aparece à janela do prédio e reclama daquela imagem profana a qual terá que se deparar todos os dias. Em discussão com Alexandre – este tenta em vão convencer à moradora de que a provocação faz parte do processo de sua obra – ela sentencia e afirma categoricamente que ele precisava estudar arte, abominando sua criação.

Segundo Alexandre Vogler, a interferência do público à sua obra se faz sentir pela negatividade de sua recepção, pois as imagens das vaginas coladas e espalhadas pela cidade são rasgadas e, segundo a matéria, alguns profissionais que colavam nos muros os cartazes já foram ameaçados pela polícia.

Este tipo de intervenção urbana, onde o objetivo principal é desestabilizar, interferir na rotina de moradores ou de toda uma população, perturbando-lhes seu centro norteador (como mostra o vídeo intitulado Atrocidade Grande, parte 3, representativo desta compreensão de performance) aproxima-se de um consenso a ser atingido por todos aqueles que dedicam-se ao aprimoramento deste procedimento artístico. Para o entendimento sobre o que significa esta arte tão complexa e, ao mesmo tempo, geradora de opiniões diversas, é necessário aprofundar os seus conceitos básicos, para concluir com as associações desejadas, o diálogo entre o mais novo trabalho exposto pelo professor de artes da Uerj com a idéia de performance.

Hans-Thyes Lehmann, combinando teatro e desempenho, afirma que “a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da arte performática (...) Duração, instantaneidade, simultaneidade e irrepetibilidade se tornam experiências temporais em uma arte que não mais se limita a apresentar resultado final de sua criação secreta, mas passa a valorizar o processo-tempo da constituição de imagens como um procedimento teatral” (Lehmann: 2007, 223-224).

Alexandre Vogler, neste trabalho específico da colagem sobre os murais, não expõe o próprio corpo, não trabalha seu corpo como mero objeto artístico, não experimenta quantas possibilidades pode alcançar com ele. A presentificação do artista, necessária para que o 'aqui-e-agora' imediato possa acontecer, também não ocorre, visto que o próprio Vogler não pode estar presente em todos os lugares onde o cartaz está colado ao mesmo tempo. Citando o sociólogo Henry-Pierre Jeudy, “o desafio do artista é mostrar, não somente do que o corpo é capaz, mas, sobretudo, do que ele ainda pode, para além das exibições já realizadas” (Jeudy: 2002, 112).

Porém, o resultado de sua obra possui um caráter intrinsecamente provocativo. A pergunta da moradora ao artista, sobre se o cartaz colado naquele muro pode ser considerado arte, circunda todos os debates envolvendo a prática pós-dramática, principalmente a performance. Interessaria se perguntássemos qual é a primeira idéia que vem à cabeça de um desconhecido ao se deparar com aquela imagem. Segundo declarações do autor, as motivações são de ordem política. Discute-se, neste trabalho, a utilização do corpo feminino como grande fetiche para vender marcas diversas. Um exemplo bem definido por todos são da maioria das marcas de cerveja, onde as expõem em maior grau. Para o grande público, leigo nos assuntos artísticos, pode-se questionar o que o autor gostaria de indagar com aquela visualidade rubra contida nas unhas que cobrem a vagina manipulada digitalmente, já que não há nenhuma exaltação a logotipo, à marca que remeta a uma empresa de cosméticos, algo que possamos decodificar como verdadeiramente publicitário. Tal imagem pode suscitar diversas reações em diferentes pessoas, sem que haja necessariamente a obrigação de um raciocínio único, a não ser o de choque quando o sexo feminino é reconhecido na foto pelos que trafegam nas ruas. Segundo Lehmann, “a tarefa do espectador deixa de ser a reconstrução mental, a recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar sua própria capacidade de reação e vivencia, a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida” (Lehmann: 2007, 224).

Alexandre Vogler rejeita o espaço sagrado de um museu ou de uma sala de exposição, onde com certeza ela estaria protegida e longe do alcance da fúria dos mais puritanos. Elege as ruas para sua vernissage e reage com naturalidade aos ímpetos dos que discordam de tamanha exacerbação sexual.

Uma dose de “ausência de limite” impulsiona, de certa maneira, a forma como o autor da obra expõe o órgão sexual feminino. Segundo Vogler, “se a mulher é usada por todas as campanhas, eu ponho o conteúdo sexista dessas mensagens no grau mais avançado. Poderia usar uma imagem mais tolerável, mas seria chover no molhado”. Ele, ao mesmo tempo em que esconde, deixa à mostra partes de um órgão que, segundo as regras da moral e da boa conduta, não devem ser mostradas. O corpo feminino tão fetichizado, aqui, é levado às últimas conseqüências.

Atualmente, uma obra de arte é considerada como pós-moderna, ou contemporânea, devido ao grau de interferência do público em sua criação. Ou seja, quanto mais a obra é aberta e acata as possíveis intervenções da platéia, estejamos num teatro, ou numa instalação, caso estivermos nos referindo a uma exposição de arte, a experiência e a sensação, para muitos, será sempre diferente de todos os que lá estavam. A contemplação deu lugar à participação.

Neste artigo, foi possível identificar o quanto de performático caracteriza este novo trabalho de Alexandre Vogler, o quanto ele é questionador e o quanto sua obra causa incomodo nas pessoas, interferindo em seus cotidianos. Segundo fontes da reportagem, não é a primeira vez que o interventor cria polêmica com suas criações na ordem urbana. Na cidade de Nova Iguaçu, Vogler figurou um enorme tridente próximo a uma igreja evangélica e a um cruzeiro, causando a ira de protestantes e católicos, que organizaram diversas manifestações de desagravo ao artista.

No site pessoal de Alexandre http://www.alexandrevogler.com/ o internatua que estiver interessado em conhecer suas criações, não pode deixar de assistir as três partes do vídeo Atrocidade Grande, documentário gerado a partir de intervenções ocorridos na cidade de São Paulo, dentro da Mostra Panorama da Arte Brasileira, no ano de 2001, além de conferir as fotos e outras imagens de seu trabalho.

Bibliografia
JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro pós-dramático. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.
[1] VELASCO, Suzana. As unhas vermelhas mais chamativas do Rio. Segundo Caderno, O Globo, 27/06/2008, p. 5.

2.7.08

A revolução do distanciamento

O teatro estava determinado em duas funções: divertir e instruir. Com tantas experiências reinava uma espécie de confusão de estilos que Brecht vai chamar de babilônico. Em cenários de pura imaginação adota-se uma representação realista, resultado de efeitos positivos e negativos de um grande processo: o aumento da capacidade de divertir ao lado da técnica ilusionista, elevação do valor didático ao lado do gosto artístico.
Brecht é a tentativa radical no sentido de conferir ao teatro, um caráter didático. Feita através da tentativa da dominação da representação cênica dos problemas contemporâneos: petróleo, guerras, revoluções, justiça, questão racial. Problemas estes que trouxeram entre outros fatores, é claro, a necessidade de transformar o palco. Piscator já havia colocado o “filme” transformando o telão num fundo rígido, o placo giratório que tornou móvel o tablado permitindo desenrolar certos acontecimentos épicos como marchas de guerra.
Transformações estas que a princípio causaram um verdadeiro caos no teatro. Transformam o palco numa verdadeira sala de maquinas e um local de reuniões. Piscator fez desse teatro um parlamento e do público um corpo legislativo. Nas suas peças eram apresentados os grandes negócios públicos que aguardavam uma decisão. Com suas reproduções, estatísticas, seus slogans, o teatro ambicionava colocar seu parlamento (o público) em condições de tomar decisões políticas. Uma copia artística de um fato social. Visava sempre suscitar uma discussão. Provocar no público não apenas a ocasião de “viver” alguma coisa, mas provocar Néel a decisão completa de intervir ativamente na vida.
Para Brecht as experiências que Piscator fizeram saltar todas as convenções. Intervieram de forma marcante no modo de criação dos autores dramáticos, no estilo dos atores, no trabalho do cenógrafo. Enfim, no final das contas, o objetivo era dotar o teatro de uma função inteiramente nova
A arte poderia construir o seu próprio mundo sem a necessidade de fazê-lo com o mundo real. E esse privilégio deve a fenômeno singular a identificação do espectador com o artista é por isso mesmo com os personagens e os fatos postos em cena.
Brecht não considera a humanidade imutável, devido a todos os processos históricos e naturais o ser transforma suas relações de trabalho, seus processos, comportamentos.
A técnica do Distanciamento desenvolveu-se na Alemanha, no curso de uma nova série de experiências onde os artistas encenavam em escolas, fabricas de operários, em companhia de amadores, tratava-se na realidade da busca das experiências anteriores realizadas por Piscator
Essa técnica abriu ao espectador de hoje o acesso aos valores vivos das dramaturgias antigas. Permitiram apresenta essas obras do passado de forma divertida e educativa sem reconstituições arqueológicas.
É ao teatro da empatia que ele descarta. Num exemplo com a peça Rei Lear.
O sujeito se coloca como ser imutável e suas ações determinadas pela natureza de qual modo que é impossível se opor. A maneira que essas ações são apresentadas faz com o que o espectador se identifique. Todas as observações, sentimentos, tomada de decisões estavam diretamente ligada aos personagens que atuavam no palco. Não permitindo observações e não transmitindo conhecimentos além daqueles que é representado de modo sugestivo. Com esse teatro Brecht considerava impossível do espectador examinar se a cólera do Lear era justificada, ou prevê conseqüências possíveis.
Nesse teatro o espectador não discute. Compartilha. E isso não se trata simplesmente imunizar o espectador da cólera de Lear.
Através do distanciamento, segundo Brecht, o teatro estaria propondo uma decisão imensa talvez, a maior de todos os tempos.
Distanciar para ele seria tirar tudo de conhecido e evidente, e fazer nascer um lugar de espanto e curiosidade.
Se o ator for representar Lear através do distanciamento, ele representaria essa cólera de tal forma que resta ao espectador a possibilidade de se espantar com ela, de imaginar outras reações possíveis, além da cólera.
Esse Lear distanciado, representado com u m comportamento surpreendente, notável como um fenômeno social que não é indiscutível. Porque a cólera que Lear sente não é semelhante a todos os homens, de todos os tempos, historicizar, consiste em representar os fatos e os personagens são como fatos, históricos, ou seja, efêmero.
O que acontece com isso é que o espectador deixa de ver os personagens representados no palco como absolutamente imutáveis, que escapam de toda influência lançadas em defesa ao seu destino.
O espectador vê esse como este ou como aquele. Imagina o homem, não como ele deveria ser, e as circunstâncias também podem ser representadas de maneira diversas. O que se ganhou é que o espectador assume no teatro uma nova atitude.
O teatro passa a adotar o espectador como a mesma atitude diante da natureza que é um ser que se transforma o tempo todo, e é também, um grande transformador, aquele capaz de intervir na sociedade.
O teatro não tenta mais embriagá-lo ou proporcionar ilusões, reconciliando com seu destino. Esse teatro mostra como teatro pode ser ao mesmo tempo fonte de prazer e conhecimento. O distanciamento permitiu isso possível a tirar o espectador do comercio da droga intelectual, da feira de ilusões, fazer do teatro um lugar onde se viam experiências. Como o homem do nosso século, esse home sem liberdade, sem saber, porém, ávido de liberdade e de saber, como esse home torturado e heróico, explorado e engenhoso, homem transformável que transforma o mundo, homem deste grande e terrível século, pode obter num teatro, o teatro que ajude a tornar senhor de si mesmo e do mundo?
Sem mais delongas, essa foi a principal razão do teatro de Brecht
GABRIEL GARCIA

PALAVRA, IMAGEM, NARRAÇÃO: A QUESTÃO DO TEATRO CONTEMPORANÊO

A busca do teatro contemporâneo passa pela por um enfrentamento ao texto monumental (em referência ao texto) tornando se matéria em mutação. É a desestabilização das obras cênicas. É como se o teatro assumisse a sua condição de “tornar as palavras visíveis”. Essa visão aumenta ao valor do texto escrito, com isso a questão do teatro passa a ser a construção da imagem cênica. Formar imagens para o que você vê e não consegue ilustrar. O texto passa a se construir por imagem. A imagem do visível. Aquilo que pulsa no texto. A palavra transformada em visão, visão como imagem do pensamento. A palavra torna-se mais um elemento sobre a possibilidade teatral.
O que acontece na verdade é a tensão da cena em relação a os estímulos que são produzidos pelo teatro, os estímulos visuais, rítmicos, a quebra dos diálogos, ações, conceito de personagem que enquadravam a arte teatral a certos padrões. Tal problematização pode ser identificada na narrativização do teatro pós-dramático.
O teatro se torna lugar de um ato de contar de peças. Encenadores como Brecht, que na estrutura de suas obras mostra uma nova perspectiva para ações dos personagens e da maneira que eles são percebidos ou mostrados.
Como descreve Picon- Vallin em A arte do teatro: entre a tradição e a vanguarda Meyerhold e a cena contemporânea:
“o palco um lugar de convenções, reuniões, fusões, acordos, conversas a distâncias, comunicações, montagens, interações de todas as artes que colaboram para a obra em comum, transformando-se, ou não, visando a uma criação de um tipo homogêneo ou dissonante, em ruptura”.
Em 1905 Craig já avistava “o teatro do futuro” e colocou sua idéia nos seguintes termos:


“(...) Eis os elementos com os quais o artista do teatro do futuro comporá as suas obras primas: com o movimento, o cenário, a voz. Não é simples?
Entendo por movimento o gesto e a dança, que são a prosa e a poesia do movimento.
Entendo por cenário tudo o que se vê, isto é, os figurinos, a iluminação e os cenários propriamente ditos.
Entendo por voz, as palavras ditas ou cantadas em oposição às palavras escritas; e as palavras para serem lidas e as palavras escritas para serem faladas são de duas ordens inteiramente distintas.”

Essa passa a ser a maneira de perceber a arte teatral e romper com a forma dramática. Além da fragmentação ,também passa a ser encenados o que a principio não foi produzido para o teatro: contos, poesias, crônicas, relatos bíblicos e pessoais, e documentos históricos, etc. A diluição das fronteiras do que é o fazer teatral. Essa temática nova funciona como um problema para antiga moldura formal.
Há também a transformação do espaço cênico. Que se liberta do palco e o teatro inteiro podem ser locais de encenação. Brecht embora ainda não exploda a palco italiano, usa o espaço como espécie de tribuna, o uso intenso do proscênio e a presença freqüente de atores narradores, e cartazes comentando a ação.
É esse o teatro do século XX, o que se apropria da poesia, a palavra não submetida ao dialogo e a busca por outros elementos que não deixem a palavra aquém dele. Ultrapassar a palavra que é a portadora de imagens. O teatro literário ganha um status porque contém indicações de espaços-temporais e lúdicos e auto suficientes e sobretudo é complexo. E para os encenadores talvez, os romances propiciem uma liberdade criadora.



Numa perspectiva de que o teatro dos anos 1990 retomou ao teatro literário para a criação do espetacular podemos citar como exemplo no teatro brasileiro contemporâneo o diretor que trabalha a narrativização dramatúrgica, Aderbal Freire-filho, diretor importante do cenário carioca. Não que nos seus trabalhos esteja à questão da possibilidade de narrar, e sim de reconstituir narrativamente os fatos do texto literário dando imagem quase unificada a encenação. Há uma predominância soberana da narrativa.
Para demolir a velha cena naturalista, abrindo inúmeras possibilidades ao realizador, Aderbal aconselha o uso de recursos poéticos na encenação:
- O trabalho do ator pode te mostrar tudo; o ator pode te levar à ilusão de estar em alto-mar, ao se abandonar o realismo. O romance-em-cena é uma forma de tornar o ator potente
Aderbal Freire-Filho define o romance-em-cena como "o jogo da ilusão do teatro levada ao paroxismo: o discurso em terceira pessoa e a ação em primeira. O passado e o presente se confundem. A adaptação é 'apenas' cênica, não se transforma o texto narrativo em texto dramático."
Há narração, mas não existe a figura do narrador: as narrações são ditas como falas pelos atores. O romance-em-cena não se trata de transformar a narração em diálogo ou rubricas, o ator que faz Hércules dirá em cena exatamente "- Fala imbecil! - gritou Hércules." - sim, ele mesmo, gritando, nos diz que grita. Desta forma, os personagens fazem em cena o que vai sendo dito deles - ou melhor, o que eles mesmos dizem deles. A rigor, não é correto afirmar que no romance-em-cena não há adaptação é o próprio Aderbal quem afirma que há adaptação, sim. Não a de transformar narração em diálogo. É o trabalho do diretor enquanto dramaturgo da encenação. Tudo é adaptação. O texto com que os atores começam a trabalhar não difere muito do que receberiam em qualquer outra peça, conta Aderbal:


- Quando trabalho “romance-em-cena” contrato um digitador que digita o livro todo, pra ter esse arquivo, e já separo as narrações e falas por personagens; os atores já o recebem mais ou menos como um texto teatral.
Até agora, Aderbal já utilizou a técnica do romance-em-cena em três espetáculos: A Mulher Carioca aos 22 Anos, de João de Minas (1994); O que Diz Molero, de Dinis Machado (2004); e O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho (2006).
Nessa peças e para focar em um exemplo a peça O púcaro búlgaro recorre à técnica do romance em cena, onde utiliza o conceito de narrador multiplicado, todos os atores narram e se revezam entre as personagens, sempre de forma mais ou menos citacional, já que os,já que os atores não se “tornam inteiramente” os personagens.
O texto de 1964 é de autoria de Campos de Carvalho possui uma experimentação formal, uma prosa fluente e descontínua. O autor que antes de morrer se declarou surrealista, é dentro desse conceito surreal que a texto flui como se fossem devaneios da mente do autor expressas pro uma corrente de palavras e sugestões numa maneira quase alucinógena.
A obra descreve a busca do protagonista que ao encontrar um antigo vaso búlgaro com asa (o tal púcaro) resolve organizar uma expedição à procura de confirmar a existência da Bulgária, algo que a realidade se duvida, não como incerteza geográfica, mas como percurso que se sabe, de saída que não se leva a lugar nenhum.
O autor reinventa certezas ao tratá-las como mentira, mostra o inverso pelo verso, e numa intensidade de palavras e de imagens verbais que sucedem com um fluxo livre de um pensamento febril.




Em sua montagem para o teatro, Aderbal freire-filho reflete essa continua superposição de palavra- imagens, e como não há uma narrativa linear, o diretor lança este fluxo como elemento impulsionador da encenação. Para isso investe na técnica que ele define como “romance-em-cena”, segundo o qual os textos literários são levados ao palco na íntegra, sem nenhuma intenção de explicar as aparentes desordens e incoerências do original.
A característica principal é a não-adaptação do texto. O diretor explora ao máximo as possibilidades teatrais do material literário. A razão é querer manter a sabor das palavras e as descrições dos personagens, nesse lugar que têm no original. Cabe aos personagens fazerem as narrações inclusive de si próprio. Há uma busca pela ilusão da cena, misto de verdade e mentira que dão um tom farsesco a representação.
O jogo cênico se organiza de forma exagerada das atuações, chegando a se confundir a teatralidade com a performance. Há uma tentativa da reconstituição dos fatos descritos na literatura que não pretende colocar em questão a função narrativa do teatro. O espetáculo rejeita o dramático-realista, próprio do teatro contemporâneo a ausência de drama e a afirmação da autonomia dos elementos espaciais e atuação.
Em Púcaro Búlgaro o diretor amplia a possibilidade da autonomia cênica e a radicalidade na encenação da palavra. A encenação segue a mesma pontuação absurda das frases que não buscam um sentido, mas adquirem seu sentido em conjunto, pelos seus desdobramentos sem nenhuma regra aparente.
Tudo na peça serve a essa agilidade: o cenário dentro da sua estrutura dispõe no palco de uma cama, uma banheira antiga e uma mesa com cadeiras. Estes elementos dinamizam a cena, todo espaço se transforma em palco. Não há bastidores e as paredes do palco se mostram nuas.


Aderbal mantém a linearidade sem deixar de permitir um discurso cênico múltiplo. Faz a literatura e a teatralidade justapostas para criar um sentido aberto que ao abrir ao espectador se faz completo. São as marcas da teatralidade contemporânea mostrando na sua estrutura e dando uma forma de teatro narrativa e fragmentada.





GABRIEL GARCIA

1.7.08

Espaço e tempo em BR3

Por Jonas Arrabal

Em ensaio publicado na revista Sala Preta – publicação da universidade de São Paulo – Hans-Thyes Lehmann fala sobre o que ele chama de teatro pós-dramático e suas novas relações de conflito, de conflitos de idéia, que esse teatro trás, em oposição ao teatro dramático apresentado por Peter Szondi em seus dois clássicos Teoria do Drama Burguês e Teoria do Drama Moderno. Lehmann fala que o teatro é feito de uma série de elementos, como pessoas, espaço e tempo, e o que acontece na modernidade é que esses elementos que sempre estiveram, de certa forma, relacionados rompem-se. E é isso que eu gostaria de propor nesse ensaio: observar essa explosão desses elementos co-relacionados no teatro contemporâneo de alto índice narrativo, principalmente tendo como exemplo a montagem do grupo paulista Teatro da Vertigem, mais especificamente o seu último trabalho BR3, dirigido por Antonio Araujo. Dentre os três elementos o tempo é o que mais me fascina. Sobre ele Lehmann comenta: “ O tempo tem para nós uma função fortemente ideológica. Com a descontinuidade do tempo, podemos nos sentir em casa. Com a descontinuidade, ou com uma nova construção desse tempo, que não a da continuidade, a gente pode perceber ou suspeitar que existem outras possibilidades de tempo ou de construção dessa realidade”(Lehmann, 2003. 11). Ainda nesse mesmo ensaio Lehmann lembra de um episodio em que o cineasta francês Jean Luc Godard é criticado por um jornalista, ao perguntar sobre o seu filme, se ele conseguia detectar se o seu filme possuía começo, meio e fim. Godard responde que sim, porém não necessariamente nessa ordem.
O que verifico no espetáculo de Araujo são essas questões: suspensão do tempo real, redimensão do tempo, uma vez que na obra do teatro da vertigem não é possível detectar começo, meio e fim, e sim uma ordem talvez godardiana para essa noção invertida do que seria realmente o começo, o meio e o fim.
Br 3 começa no ano de 1959, guando Jovelina sai do Nordeste, grávida, para ir atrás do seu marido que trabalha na construção da nova capital do país. Ao chegar em Brasília fica sabendo da morte do marido no canteiro de obras. Ela parte para São Paulo , muda de vida , passa a comandar o tráfico na periferia, num bairro chamado Brasilândia. A história ainda vai rodar em meio a uma outra cidade na fronteira com a Bolívia, chamada Brasiléia e a saga segue até o ano de 1997. Mais do que relatar a peça, mesmo de forma sucinta, quero mostrar o percurso pelo qual segue a narrativa. Tempo e espaço já estão problematizados e não é possível verificar na estrutura da narração uma estrutura linear para os acontecimentos dos fatos. A histórica começa em 1959, com a migração do nordeste para o futuro distrito federal, ainda planalto em construção e termina no ano de 1997, porém a narrativa são segue esses acontecimentos causais.
Em ensaio sobre a montagem em livro d sua organização, Silvia Fernandes fala: “ Composto por meio de sucessivos deslocamentos da narração para a ação, das vigílias da Evangelista para o drama familiar, o texto se aproxima do procedimento que Jean-Pierre Sarrazac chama de rapsódico, conceito transversal no teatro contemporâneo, indicativo de uma montagem híbrida de elementos líricos, épicos e dramáticos e de uma construção oscilante, tramada no vai-e-vem entre tempos e lugares distintos.” Realmente, o que é possível verificar na estrutura de BR 3 é justamente essa hibridização de formas, onde o épico ganha um patamar muito grande, dentro dessa narrativa que passeia por décadas, que conta a história de toda uma geração. Ao falar de Jean Pierre-Sarrazac lembro de outro ensaio, escrito por Luiz Arthur Nunes onde ele relata a sua experiência com a montagens de textos ditos não dramáticos, com a sua peça A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, que não fora escrita como estrutura dramática. Nunes transpôs esse texto para o palco sem haver transposição de gêneros e os atores trabalham como narradores da ação, e utilizando o conceito de Sarrazac, ele os chama de atores rapsodos.
Bernardo de Carvalho não é um dramaturgo. É um brilhante autor de literatura e que participou do processo junto com Antonio Araujo, indo em campo, fazendo trabalho de laboratório junto com o elenco. É possível verificar a experiência de Bernardo de Carvalho em ensaio escrito pelo próprio escritor, do qual ele relata a sua experiência numa igreja evangélica na periferia de Brasilândia, que serviu para escrever inclusive uma das cenas do espetáculo e até se inspirar numa personagem.
Uma vez escrita o espetáculo, o texto de Bernardo de Carvalho não é acatada como o texto dramático a seguir durante todo o processo e que culmina na apresentação daquilo que o autor escreveu. O processo da companhia se dá mais através de acumulação de experiências durante todo o processo, do que no simples ato de decorar um texto previamente escrito e lançar em cena. Dezoito atores da companhia partiu para a estrada e seguiram milhares de quilômetros de Brasília até Brasiléia, no norte do país. Muito do que está na peça vem da experiência e da vivência dos atores nesse percurso, inclusive o próprio Bernardo, inclusive o próprio Araujo. Existe uma divisão de autoria do espetáculo entre todos os envolvidos, uma pesquisa de campo.
Brasiléia, Brasília e Brasilândia reflete três Brasis bastante heterogênios. Penso que a pesquisa da companhia vai ao encontro de descobrir justamente essa heterogeneidade e a multiplicidade de "Brasis" dentro de um imenso Brasil,plural e injusto.
Falei num desdobramento temporal e espacial do espetáculo, no sentido de pular o tempo, de contar décadas de história e percorrer milhares de quilômetros, de Brasilândia a Brasiléia, dentro de um barco no Rio Tiete. E a relação com o público? Toda “mágica” do teatro que reflete o drama absoluto não existe mais, e isso é decorrente no teatro contemporâneo. O público se localiza num barco e assiste a peça acontecer dentro de outros barcos ao redor. Toda a atmosfera do Rio Tiete vem a tona com o seu cheiro insuportável, com a escuridão que permeia os barcos e com as surpresas a todo instante. Relação antes apresentada por Lehmann entre pessoa, tempo e espaço que é quebrada é possível verificar aqui, nessa montagem cheia de audácia da companhia, mas que infelizmente não pode continuar devido ao alto custo da produção.
Sobre a dramaturgia de Bernardo de Carvalho aponto que ela é totalmente atualizada pela encenação de Araujo, e para isso cito o texto, também cheia de citações a outros teóricos, publicado na revista Percevejo. Ela afirma que: “ talvez a resposta dos dramaturgos à escritura autoral dos encenadores tenha sido uma dramaturgia não dramática, sem ação, que em última instância é autônoma. Pode ser lida como poema, depoimento ou relato(...)”
Talvez a dramaturgia de Bernardo de Carvalho possa ser lida como prosa, uma história de muitos "Brasis". E a encenação de Araujo possa ser vista e ouvida de forma autônoma dessa dramaturgia, tendo como matéria prima viva a carga de experiência que o grupo adquiriu com seu nomadismo durante semanas pelo país a fora.


CARVALHO, Bernardo de. Eu vivo nesse mundo. In: Teatro da Vertigem : BR3.Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006
FERNANDES, Silvia. Cartografia BR 3. In: Teatro da Vertigem : BR3.Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006
FERNANDES, Silvia. Notas sobre dramaturgia contemporânea. In: In Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.
Nunes, Luiz Arthur. Do livro ao Palco. In Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-dramático e Teatro político. In Revista do departamento de artes cênicas – ECA – USP. N.3, 2003.

29.6.08

ANDANDO EM TERRA DE NINGUÉM

“Não sei resumir nenhuma das minhas peças. Não sei descrever nenhuma. Só sei dizer foi isto o que aconteceu, foi isto o que disseram, foi isto o que fizeram.”

Harold Pinter



No Man's Land (2007). By American Repertory Theater


Harold Pinter dirigindo No Man’s Land (2001).


Por Raphael Cassou



Este ensaio tem como propósito apontar algumas das características utilizadas por Harold Pinter na construção de sua linguagem dramatúrgica, usando como base o texto No Man’s Land.
Harold Pinter nasceu em 1930 em um subúrbio pobre de Londres, ao norte do Rio Tâmisa. Iniciou sua carreira artística como ator em 1950 sob o pseudônimo de David Baron. Em 1957 escreve sua primeira peça The Room. Ao todo já escreveu mais de 30 peças, roteiros e esquetes para teatro, cinema e televisão, que foram traduzidas e encenadas por todo o mundo. É um dos mais importantes renovadores do teatro moderno. Em 2005 foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Segundo o editor e tradutor inglês, Eric Kahane:

"O teatro de Harold Pinter revela um universo singular, cómico e aterrador, feito de sub-entendidos, mal-entendidos ou puros equívocos. Nele observa-se, como se fosse ao microscópio, personagens que vegetam confusamente, de quem quase nada se sabe e que, de repente, explode num confronto em que as palavras são armas mortais. Estamos no reino do falso para se atingir uma verdade que é ainda mais falsa. As perguntas que se colocam não são aquelas que nos vêm à cabeça e a resposta, ou a recusa de responder limita-se a aumentar o abismo da incompreensão. O pudor torna-se violência, o sorriso ameaça, o desejo impotência, a vitória desfaz-se."

Através da leitura do texto Terra de Ninguém torna-se possível estabelecer certas nuances marcantes que caracterizam a dramaturgia pinteriana. A forma pela qual a introdução de pausas e silêncios exercem forte influência nas falas das personagens e servem de fio condutor das ações, é um bom exemplo.
Terra de Ninguém (No Man’s Land, no original) foi escrita em 1974 e produzida em 1975 por Peter Hall, sendo apresentada no Old Vic (então casa do Royal Nacional Theatre) e estrelada por John Gielgud, como o sórdido e calculista Spooner e Ralph Richardson como o recluso Hirst. Esta produção foi levada à Broadway em 1976 e filmada para a televisão no mesmo ano.
Sua maior remontagem foi em 1992, no Almeida Theatre (posteriormente transferida para o West End) e foi estrelada por Paul Eddington como Spooner e o próprio Pinter como Hirst.
Em 1994, Jason Robards ( conhecido no cinema por filmes como Todos os Homens do Presidente e Filadélfia) interpretou Hirst e Christopher Plummer (A Noviça Rebelde) no papel de Spooner. Esta montagem, dirigida por David Jones, valeu uma indicação ao Tony Awards para Plummer.
Em 2001, novamente no Nacional Theatre, Spooner foi interpretado por John Wood e Hirst por Corin Redgrave sob a direção de Harold Pinter.
Terra de Ninguém, foi levada à cena em 2007, nos Estados Unidos, pela American Repertory Theater, sob a direção de David Wheeler no Loeb Drama Center.
Este texto apresenta quatro personagens masculinos. Hirst, um homem de aproximadamente 60 anos, Spooner também da mesma faixa etária, Briggs, homem por volta dos 40 anos e Foster, com cerca de 30 anos. A ação se passa na sala da casa de Hirst, um escritor de sucesso que vive recluso e afastado do contato com o mundo exterior em uma espécie de retiro voluntário. Spooner vem a seu encontro na tentativa de convencer o outro a participar de um evento literário promovido por ele. O visitante é contemporâneo de Hirst, os dois foram colegas em Oxford na década de 30, entretanto Spooner não alcançou a mesma fama que seu anfitrião. Briggs e Foster aparecem como empregados de Hirst: o primeiro é uma espécie de empresário/mordomo e o segundo é um jovem aspirante a escritor que nutre uma grande admiração por seu patrão e que faz as vezes de assistente e secretário particular. A missão de ambos é justamente proteger Hirst das investidas do sórdido Spooner e de manter seu chefe em seu estado de reclusão, procurando de todas as maneiras afastar Spooner de seus intentos. Para Spooner retirar Hirst de seu contato com o mundo exterior significa ter a possibilidade de retomar a sua carreira literária e ele habilidosamente consegue, através de um jogo de palavras intenso, driblar Briggs e Foster. E é neste embate de palavras que se estabelece a relação entre Hirst e Spooner. Muito dos pensamentos e das falas daquele são desconexas; isso é mostrado de forma ambígua, pois em nenhum momento há a certeza absoluta de que os saltos de lógica de Hirst são de fato verdadeiros ou apenas um hábil jogo para afastar seu interlocutor. Essa ambigüidade é revelada pelo estado recorrente de embriaguez no qual se encontram as personagens ao longo da peça. Harold Pinter se utiliza de uma cena inteira com as simulações de Hirst, na tentativa deste em reconhecer a figura de Spooner como seu conterrâneo de Oxford. Spooner por sua vez joga Hirst em um extravagante e perigoso jogo de reminiscências. Uma das características mais marcantes desta peça é a grande quantidade de pausas e silêncios nas falas das personagens. Isto revela que a cada investida o que se diz é criteriosamente estudado, em um fluxo de consciência das personagens que com suas falas procuram atingir mais fundo o seu oponente. É notório durante toda a peça os “estados de alma”, os “fluxos de emoção” e a falta de lógica nas quais se encontram principalmente Hirst e Spooner. Este por querer levar adiante seus planos e aquele em manter-se firme em suas convicções. Em dado momento Spooner chega a implorar ao outro uma oportunidade, como é observado neste trecho:

Spooner (para Hirst): Deixe-me viver consigo, ser seu secretário.
Hirst: Anda aqui uma varejeira? Escuto um zumbido.
Spooner: Não.
Hirst:
Está a dizer que não.

Spooner:
Sim.

Pausa
.

Hirst:Peço-lhe...que me tome em consideração para o cargo. Se eu estivesse usando de fato como o seu, o senhor ver-me-ia sob uma luz diferente. Sou extremamente hábil com comerciantes, bufarinheiros, angariadores, freiras. Posso manter-me em silêncio quando desejado ou, quando desejado, ser sociável. Posso discutir qualquer tema à sua escolha – o futuro da nação, flores selvagens, os Jogos Olímpicos. É verdade que conheci tempo difíceis, mas minha imaginação e inteligência continuam intactas. O meu desejo de trabalhar não sofreu erosão...”

Na fala de Spooner observa-se claramente uma última e desesperada tentativa de conseguir alcançar seu objetivo, mesmo que isso signifique colocar-se à disposição de Hirst e servir-lhe como empregado. Spooner entende de que alguma forma sua carreira perdeu-se no tempo e ele enxerga em Hirst a possibilidade de retomar sua carreira. Em outro momento também é claro o “fluxo de consciência” de Hirst que reflete a respeito de sua condição e brinda a isso. Desta forma ele reafirma o seu status quo e conclui que a “Terra de Ninguém” é um estado de alma dele e que nada vai afastar-lhe deste caminho.

“Hirst: Mas eu escuto sons de pássaros. Não ouvem? Sons como nunca ouvi. Escuto-os tal como devem ter soado então, embora eles não soassem a nossa volta. Pausa.
Sim. É verdade. Caminho em direção a um lago. Alguém me segue, por entre as árvores. Despisto-o facilmente. Vejo um corpo na água, flutuando. Estou excitado. Aproximo-me e vejo que me enganei. Na água não há nada. Digo pra mim mesmo, vi um corpo a afogar-se. Mas estou enganado. Não há nada lá.
Silêncio.

Spooner:
Não. O senhor está em terra de ninguém. Que não se move, que nunca muda, que nunca envelhece, que permanece para sempre num gélido silêncio.
Silêncio.
Hirst:
Bebo a isso.

Bebe.”

O diálogo final da peça, como demonstrado acima, apresenta a maneira dúbia com que Pinter encerra seu texto, pois não é revelado qual será o destino de Spooner, ou mesmo o de Hirst.
Com Terra de Ninguém, Pinter reafirma suas características como autor dramático, pois mais uma vez confronta o confinamento de suas personagens a determinado espaço. Apesar da didascália inicial apontar uma sala ampla, o que se vê durante o desenrolar da ação é um ambiente extremamente claustrofóbico.
Outro ponto a se destacar na dramaturgia de Harold Pinter é o veto pela decifração: não existem verdades absolutas e, mais ainda, em Terra de Ninguém existem enigmas que não necessariamente precisam ser mostrados, nem tão poucos explicados ou esclarecidos. É característico das duas personagens principais uma valorização do passado, mas isso não define o caráter destas.
Um artifício marcante na dramaturgia pinteriana é o uso recorrente das pausas e silêncios como marca, este recurso faz com que as personagens reflitam muito antes de se expressar, cada palavra é cuidadosamente dita. A este respeito, Mireia Aragay, em seu texto Harold Pinter: Teatro, linguagem, política afirma:

“O diálogo e sua ausência – os silêncios e as pausas – constituem um campo de batalha em peça como The Room (1957), The Birthday Party (1965) ou No Man’s Land (1975), há uma luta ou negociação verbal permanente e frequentemente dolosa. Qualquer coisa que diga – ou se cale – um personagem de Pinter se encontra submetido a este princípio de poder, ao qual significa que pouco importa se é certo ou não: não se trata de verificar seu valor referencial – sua relação com a realidade, com a verdade – mas de explicar o que poderíamos chamar de sua carga pragmática, aquilo que, como afirma Pinter, sublinha a fala.”

Sobre as motivações que movem as personagens de Pinter, Martin Esslin em seu livro Teatro do Absurdo escreveu:

“É o problema da possibilidade de jamais sabermos qual é a motivação real por trás das ações de seres humanos complexos, cuja constituição psicológica é contraditória e inverificável. Umas das grandes preocupações de Pinter como dramaturgo é justamente a da dificuldade de verificação.”

O próprio Harold Pinter diz a respeito desta sua maneira de construção dramática:

“Sinto que em lugar de incapacidade de comunicação o que existe é a procura deliberada de evitar a comunicação. A comunicação entre homens é em si tão apavorante que para evitá-la há um pensamento em jogo de disparates, uma permanente mudança de assunto, que são considerados preferíveis o que está nas raízes de suas relações.”

Harold Pinter, como na maioria de suas peças, nos presenteia com personagens que se revelam aos poucos e de forma incompleta e que exprimem em suas falas aquilo que lhes vêm à mente de forma inconsciente na aparência; revelam verdades que nem sempre gostaríamos de ouvir e que espelham a vida real tal como ela se apresenta; muitas vezes com requintes de crueldade.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PINTER, Harold. Relógio D’água – Teatro III, Terra de Ninguém, p.112-113.
ESSLIN, Martin. Teatro do Absurdo. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 3ª ed. 1968, p. 251-252.
ARAGAY, Mireia. Harold Pinter: Teatro, lenguaje, política, ADE Teatro, p. 44.
http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml http://www.artistasunidos.pt/harold_pinter.htm


Um objeto de reflexão: O Teatro Épico por Walter Benjamin

Por Pedro Alonso

O filósofo, sociólogo e crítico alemão Theodor Adorno (1903/1969) defende em seu Ensaio como forma a fluidez e a liberdade de uma prática literária que não almeja revestir-se de um rigor científico. Segundo o autor, “o ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada, segundo o modelo de uma irrestrita moral do trabalho” (Adorno: 2003, 16-17). Sem a pretensão de moldar um objeto às normas e dogmas pré-estabelecidos, o ensaio rejeita, portanto, um enquadramento rigoroso às formas definitivas e fechadas, característicos do cientificismo acadêmico, pois “o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva (...) ele recua assustado diante da violência do dogma” (Adorno: 2003, 25). Baseado nesta premissa, e para a condução das reflexões sobre o tema proposto, foi escolhido como objeto de reflexão e análise o ensaio do também alemão Walter Benjamin (1892/1940) intitulado O que é o Teatro Épico: um estudo sobre Brecht, onde é possível verificar o esforço do autor de compreender e registrar o momento histórico que instala, no cenário artístico da Alemanha no final da década de vinte, de uma nova prática teatral calcada na desestruturação de formas pré-estabelecidas e estratificadas entre palco e platéia, texto e representação, atores e diretores, representativos de uma ordem social caracteristicamente burguesa. Trata-se de averiguar um momento específico, gerador dos primeiros experimentos textuais e cênicos de Brecht, o qual intitulou de Teatro Épico.
Adorno afirma que o objeto de estudo de um ensaísta parte sempre de um referencial anterior, algo que já foi escrito ou inventado. O papel deste último, portanto, é aprofundar, destrinchar, trazer a luz novos conceitos a cerca do que, outrora, fora observado ou atestado primeiramente: “Ele (o ensaio) não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer. Seus conceitos não são construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último. Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio, superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito” (Adorno: 2003, 17). Parece que Benjamin segue a cartilha do companheiro e membro da Escola de Frankfurt, pois as observações que desenvolve em torno das formas do teatro épico são indagações de natureza empírica. O autor inicia seu ensaio problematizando a relação existente que se verifica no espaço sagrado da encenação: o palco. Primeiro porque Benjamin questiona o verdadeiro caráter das relações funcionais entre o teatro político e a platéia que a assiste. O aparelho teatral não se modifica. A disposição palco-platéia não se desestrutura e a frontalidade do palco italiano continua sendo o suporte para o desenrolar de fábulas com teor propagandista, limitando aquele a franquear (termo é utilizado pelo próprio Benjamin em seu ensaio) determinados procedimentos característicos do teatro concebido para uma platéia essencialmente burguesa. As encenações brechtinianas não permitem a instalação de um enredo coeso, harmônico, estruturado dentro do princípio das três unidades. Nas palavras do autor, “Uma de suas principais funções é a de interromper a ação, e não ilustrá-la ou estimulá-la. E não somente a ação de um outro, mas a própria” (Benjamin: 1985, 80). Se para retratar a realidade, a cena realista abre mão de recursos teatrais que não devam remeter ao espectador a lembrança de que está assistindo a uma representação, dentro de um espaço propício para tal finalidade, separado da platéia pela invisível quarta parede, o teatro épico, do contrário, “conserva o fato de ser teatro uma consciência incessante, viva e produtiva”. Ele precisa dessa atenção constante do espectador para que este próprio possa ter os meios de tomar uma posição acertada sobre os infortúnios dos personagens que vê representado a sua frente, o que Brecht irá denominar de “atitude crítica do espectador” (Duvignaud: 1972, 30). Mais uma vez recorro a Adorno, onde determina que num ensaio, “o pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não pela profundidade com que e capaz de reduzí-lo a uma outra coisa (...) ele unifica livremente pelo pensamento o que se encontra unido nos objetos de sua livre escolha” (Adorno: 2003, 27). Nota-se que neste belo exemplar de ensaio elaborado por Benjamin, num momento de forte turbulência política, ele não pretendeu esgotar o tema Teatro Épico, mesmo dedicando-se a explicar toda relação que o baliza: a importância do gestus, que tipo de ruptura causa e quais elementos ele agrega para o seu mecanismo (como as técnicas visuais das projeções, facilitados pelo advento do cinema) além de refletir sobre a postura arrogante da crítica especializada, onde são defasados todos os recursos para se avaliar a qualidade deste tipo de espetáculo. A partir daí as experimentações brechtinianas avançaram de forma que Benjamin não pode verificá-las, pois o desespero de ser capturado pela polícia nazista impulsionou o filósofo e pensador alemão ao suicídio.
A compreensão de Walter Benjamin sobre o Teatro Épico (a organização teórica que permitiu às suas reflexões obterem um caráter ensaístico) é um excelente paradigma a ser lido e relido diversas vezes, obtendo a cada nova leitura um novo entendimento ou um novo esclarecimento sobre este início das atividades teatrais de Brecht, pois concluído com as palavras de Theodor Adorno, “compreender passa a ser apenas o processo de destrinchar a obra em busca daquilo que o autor teria desejado dizer em dado momento, ou pelo menos reconhecer os impulsos psicológicos individuais que estão indicados no fenômeno” (Adorno: 2003, 23).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. SP: Duas Cidades, 2003.
BENJAMIN, Walter. O que é teatro épico? In: Obras escolhidas I. SP: Brasiliense, s.d.
DUVIGNAUD, Jean. Sociologia do Comediante. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

17.6.08

A indiferença da academia pelo presente

A difícil crítica do presente

Por Beatriz Resende[i]


No último maio, chegou ao fim a importante revista argentina Punto de Vista, depois de 30 anos de crítica combativa, servindo como referência decisiva em diversos momentos da vida latino-americana. Sua editora, intelectual que procurou sempre juntar literatura e política, Beatriz Sarlo, afirma que a revista – que sempre foi absolutamente independente não só em suas posições como em suas formas de sustentação –não passa por nenhuma dificuldade econômica. Provavelmente seu fechamento precipitou-se pelas crises internas que vive desde que dela se afastou Carlos Altamirando e outros, em 2004. Mas aqui, o que vem ao caso notar, são algumas das afirmações de Sarlo no editorial do número 90, o último: “Final”. Aí aparecem as dificuldades representadas pelo que foi também o grande mérito da publicação por todos estes anos: a sintonia crítica com o presente, com o imediato. Foi assim que se ocupou da literatura argentina em relação com a história recente, o que, segundo Sarlo, hoje não é novidade, mas o foi nos anos 80, quando a abordagem se tornou, para ao grupo, uma chave interpretativa. Falaram de cidade e cultura quando o tema ainda não estava na moda e usaram como referência teórica Raymond Williams, Juan José Sauer e Sebald quando tais autores ainda não circulavam efetivamente no universo da crítica.
O que Beatriz Sarlo assegura ser decisivo para uma publicação dedicada à cultura e à política me parece ser decisivo para qualquer realização do exercício crítico. Diz a criadora da revista: “Pensé ( y pinso hasta hoy) que es preferible que uma revista se equivoque a que permanezca igual a si misma quando las cosas cambian o quando los temas se banalizan”.
Sem dúvida é este o risco e o fascínio, a possibilidade de equívoco ou de contribuição modificadora que a crítica literária corre quando se ocupa, sobretudo, de autores novos, alguns ainda em formação. É o risco de se deslocar do campo antes de mais nada seguro do cânone – não apenas para afirmá-lo, mas mesmo para questioná-lo – para uma zona de apostas, do perigoso jogo de tentar ler o futuro no presente que é se apresenta ao leitor iniciado. Porisso, talvez, a crítica acadêmica – justamente aquela que é praticada no espaço seguro das universidades, onde, convenhamos, temos hoje a liberdade de dizermos o que quisermos – pouco se ocupe no contemporâneo, do imediato. De que outros espaços dispomos, então? Revistas literárias, de crítica, de reflexão, praticamente inexistem. Aquelas que poderiam ter a segurança se estarem ligadas às universidades vivem dificuldades cotidianas que tornam sua publicação tão lenta que, ao circularem, aquele que aí visitar o novo, o que merece provocar o debate dentro da produção cultural do presente, já aparecerá atrasado. Ou ficará restrito ao pequeno âmbito de circulação a que a tiragem limitada obriga. Restam os suplementos dedicados à arte e cultura, uns pouco e heróicos sobreviventes, onde o número de caracteres destinados a cada colaborador diminui a cada número. É preciso sobreviver, competindo com os cadernos de automóveis, culinária e vinhos ou inutilidades, artigos bem mais vendáveis. E antes a culinária do que as celebridades!
A tendência crítica é ver o passado, seja pela memória seja pela história, como conflituoso, solicitando releituras ainda por serem feitas, e, por isso mesmo, fértil. E realmente o é. À produção literária do presente resta, o mais das vezes, a indiferença.
Não é apenas por acreditar na força da ficção brasileira contemporânea que penso que ela deve ser conhecida, lida, estudada, fruída, mas sim porque acredito que o jovem autor, aquele que busca uma experiência literária inovadora ou as vozes que apenas recentemente se apropriaram do texto literário – seja o que for que se entenda por literatura hoje –merecem e precisam do debate.
Se nos detivermos sobre a produção desta década, percebemos as múltiplas possibilidades que têm se afirmado com grande conpetência, mas também já podemos vislumbrar alguns impasses. O retorno dominante à narrativa da realidade já mostra as ciladas que oferece junto com o interesse imediato, a identificação fácil ou a possibilidade de um texto literário migrar com facilidade do livro para outras mídias mais rentáveis. O excesso de metalinguagem, a paródia que se revela com obviedade ameaçam mesmo autores de escrita sofisticada. A belle écriture do texto cansa tão rapidamente quanto a vulgaridade compulsivamente repetida. O texto de pouco fôlego é um intervalo curioso, mas perde a força se for uma constante. Por outro lado, a aposta em aspectos “profanadores”, para usar a expressão de Giorgio Agamben, muitas vezes cessa ao primeiro oferecimento de uma grande editora, aquela que se interessara justamente pelo valor da profanação.
Apontar impasses é a contribuição que a crítica pode oferecer. Para esse exercício político do fazer literário, no sentido que Jacques Rancière dá à política da literatura, como uma maneira de intervir na partilha do sensível que define o mundo que habitamos, é preciso, antes de tudo, correr o risco que falar do presente, do imediato, oferece.
Como sempre se perde e sempre se ganha alguma coisa a cada virada no mundo da cultura artística, se a crítica acadêmica perde espaço a cada recusa que um autor recebe ao exibir, quase como num gesto obsceno, seu volume de ensaios diante de um editor, outros espaços vêm surgindo no universo livre da web. Até agora, são principalmente os jovens (alguns já não tão jovens) autores que têm se utilizado desta ferramenta, para divulgar seus trabalhos, partilhar experiências e trocar críticas na formação de uma nova forma de “vida literária”. Por mais que o incomparável perfume do papel faça falta a nossos narizes viciados, vale a pena tentar ocupar esses novos espaços.No mínimo, os críticos logo terão respostas de algumas vozes arrogantes e outras carentes de diálogo, cairão na rede de discussões por vezes divertidas, receberão sugestões daquele mago da Amazon que lê nossas aspirações intelectuais mais íntimas e uma inevitável boa quota de spans.

[i] Beatriz Resende é coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, professora da UNIRIO e pesquisadora do CNPq.