Por Verônica Fernandes
“Se a sociedade de amanhã ainda considerar que a experiência estética é a única capaz de garantir uma experiência individual livre e reativa com o mundo, e realizar essa experiência com os meios de seu sistema, a arte já não se fará com o pincel ou a argila, mas, enquanto memória e pensamento da arte, influirá positivamente sobre os novos modos de experiência estética. Lembremos que a arte, em todo o seu passado, foi um modo de experiência individual, um trabalho manual transposto numa comunicação conceitual. Numa sociedade de cultura de massa, o pensamento e a memória da arte também poderão ser, se estiver salvaguardada a liberdade dos indivíduos, os impulsos criativos que, provindo das profundezas da história, haverão de gerar uma experiência individual recapituladora, porém não destruidora, da experiência coletiva.”
Giulio Carlo Argan[1]
Este parágrafo final do capítulo “A crise da obra de arte como ciência européia” de “A arte moderna” me faz pensar sobre as possibilidades do homem se expressar artisticamente que se revelaram no século XX, e de que maneira elas se refletem na arte contemporânea.
No ano de 1917, Marcel Duchamp “escolheu” um mictório de louça utilizado em sanitários masculinos, e enviou ao “Salão da Associação de Artistas Independentes”, com o sugestivo título de Fonte, mais tarde nos anos 50 repetiu a experiência e nesse momento “sua escolha” foi instituída como obra de arte. Quando propôs o ready made, Duchamp estava lançando as bases para uma aproximação radical entre vida e arte e rompendo com seus limites, quer dizer trazendo a noção de que arte não estaria limitada ao ato de “fazer”, de “construir”, mas que poderia abranger o pensamento, a “escolha” do sujeito. Esse deslocamento do objeto cotidiano, “a priori” não reconhecido como artístico, para o campo das artes, para muitos significa radicalizar um gesto banalizante da arte, no entanto, em “Kant depois de Duchamp”, Thierry De Duve afirma que “Com o readymade, a passagem do julgamento estético clássico para o julgamento estético moderno é trazida à tona, com a substituição de “isto é belo” por “isto é arte”. Afirmar que uma pá de neve é bonita (ou feia) não a transforma em arte, e a frase mantém seu caráter de julgamento estético clássico de gosto, referente ao design da pá de neve.” Essa escolha então se mostra como um olhar do artista, em direção à vida cotidiana, um novo olhar para o mundo do qual faz parte, talvez eu possa afirmar que é uma resposta do artista as mudanças na ordem econômico/social que se estabeleciam e se faziam irremediáveis. Mas o aspecto que me interessa é seu caráter libertador em torno do pensamento artístico e a transposição de limites dos territórios da arte; a invenção de novos sentidos para o mundo estimulando a nossa imaginação.
Deste modo percebo que a performance é uma linguagem que parece traduzir muito bem o deslocamento de “Isto é belo” para “Isto é arte” colocado por De Duve, e o estreitamento entre arte e vida. Segundo Richard Schechner[2], “no século XXI as pessoas têm vivido como nunca antes, através da performance”, para ele a performance é um ato que está relacionado à: “Ser”, “Fazer”, “Mostrar-se fazendo” ou “Explicar ações demonstradas”. Schechner traça um paralelo entre o ato performático artístico e cotidiano. Na vida se trata de um “comportamento restaurado” que requer anos de treinamento do indivíduo, desde gestos cotidianos simples, “como escovar os dentes”, até ações mais complexas que exigem de nós uma constante reflexão, como nos relacionar socialmente. O ato performático artístico também exige do sujeito um constante treinamento e passa por uma reflexão. Outro aspecto que reforça a idéia de Schechner, do homem hoje viver através da performance, é o seu convívio com os recursos midiáticos, “performamos” na internet através das webcams, youtube e orkut, assistimos à “notícias-show”, “restauramos comportamentos”. Renato Cohen esclarece em seu, “Performance como linguagem” que “A performance, na sua própria razão de ser, é uma arte de fronteira que visa a escapar às delimitações, ao mesmo tempo em que incorpora elementos das várias artes” o uso de multimídia, e recursos tecnológicos estão presentes reforçando seu aspecto de “arte de fronteira”, num contínuo movimento de ruptura com a arte estabelecida. É válido lembrar que o ato performático, enquanto expressão artística está ligado aos happenings, que tem no estreitamento entre arte e vida um de seus ideais, mas Renato Cohen esclarece as diferenças entre as duas linguagens, afirmando que a performance caminha em direção a um “aumento de esteticidade obtida através do aumento de controle sobre a produção e a criação – em detrimento de espontaneidade e um aumento de individualismo – com maior valoração do ego do artista – em detrimento do coletivo e do social, privilegiados no happening”. Sua linguagem abarca elementos que sintonizam com o mundo contemporâneo; o uso de novas mídias, uma estrutura fragmentada – que poderia refletir a fragmentação do próprio homem – expressão cênica e plástica, pluralidade, e um caráter mais “individualista”, me parecem de acordo com o homem que ao interagir com o mundo através da internet, se isola na frente de seu computador. Uma última citação de De Duve, “A antinomia do julgamento estético moderno está, portanto, resolvida. Tese. A afirmação “isto é arte” não se baseia no conceito de arte, mas no sentimento estético/artístico. Antítese. A afirmação “isto é arte” assume o conceito de arte, assume a Idéia estético/artística. Na tese, “conceito” refere-se à um conceito determinado que deveria ser afirmado teoricamente, e “sentimento”, a todos os sentimentos envolvidos no amor à arte, Na antítese, “conceito” não se refere a um determinado conceito de entendimento, mas, sobretudo, à Idéia indeterminada de razão.”
“Aumento de esteticidade”, “sentimento estético/artístico”, “idéia estético/artístico”, essas colocações me fazem refletir a arte contemporânea com toda a sua pluralidade. Se o artista, enquanto sujeito crítico, pode criar sua obra a partir de um conceito, e o belo já não é mais o centro da questão, o artista performático seja ele oriundo das artes plásticas ou das artes cênicas, estará criando, não necessariamente numa tela (no caso do artista plástico) ou através de um personagem (no caso do ator). Poderá fazer-se parte de sua obra, pois o que ele tem a comunicar é o seu pensamento crítico em relação ao que sua percepção está captando do ambiente social. Da sua obra de arte faz parte o ser que é; determinado por sua visão de mundo, o que ele enxerga, enquanto homem pertencente a essa sociedade, como se relaciona a partir de sua visão e como transforma isso em arte através de si. Vida e arte com limites estreitos, numa linguagem da qual a própria vida já se apropriou, a obra de arte refletindo o entendimento, ou o não-entendimento acerca do sujeito contemporâneo, seu modo de vida e as mudanças que o momento em que vivemos provocou em nossas percepções.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. Revista do Mestrado em História da Arte EBA. UFRJ, 2º Semestre 1998.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo. Ano II, 2003, nº12
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992.
“Se a sociedade de amanhã ainda considerar que a experiência estética é a única capaz de garantir uma experiência individual livre e reativa com o mundo, e realizar essa experiência com os meios de seu sistema, a arte já não se fará com o pincel ou a argila, mas, enquanto memória e pensamento da arte, influirá positivamente sobre os novos modos de experiência estética. Lembremos que a arte, em todo o seu passado, foi um modo de experiência individual, um trabalho manual transposto numa comunicação conceitual. Numa sociedade de cultura de massa, o pensamento e a memória da arte também poderão ser, se estiver salvaguardada a liberdade dos indivíduos, os impulsos criativos que, provindo das profundezas da história, haverão de gerar uma experiência individual recapituladora, porém não destruidora, da experiência coletiva.”
Giulio Carlo Argan[1]
Este parágrafo final do capítulo “A crise da obra de arte como ciência européia” de “A arte moderna” me faz pensar sobre as possibilidades do homem se expressar artisticamente que se revelaram no século XX, e de que maneira elas se refletem na arte contemporânea.
No ano de 1917, Marcel Duchamp “escolheu” um mictório de louça utilizado em sanitários masculinos, e enviou ao “Salão da Associação de Artistas Independentes”, com o sugestivo título de Fonte, mais tarde nos anos 50 repetiu a experiência e nesse momento “sua escolha” foi instituída como obra de arte. Quando propôs o ready made, Duchamp estava lançando as bases para uma aproximação radical entre vida e arte e rompendo com seus limites, quer dizer trazendo a noção de que arte não estaria limitada ao ato de “fazer”, de “construir”, mas que poderia abranger o pensamento, a “escolha” do sujeito. Esse deslocamento do objeto cotidiano, “a priori” não reconhecido como artístico, para o campo das artes, para muitos significa radicalizar um gesto banalizante da arte, no entanto, em “Kant depois de Duchamp”, Thierry De Duve afirma que “Com o readymade, a passagem do julgamento estético clássico para o julgamento estético moderno é trazida à tona, com a substituição de “isto é belo” por “isto é arte”. Afirmar que uma pá de neve é bonita (ou feia) não a transforma em arte, e a frase mantém seu caráter de julgamento estético clássico de gosto, referente ao design da pá de neve.” Essa escolha então se mostra como um olhar do artista, em direção à vida cotidiana, um novo olhar para o mundo do qual faz parte, talvez eu possa afirmar que é uma resposta do artista as mudanças na ordem econômico/social que se estabeleciam e se faziam irremediáveis. Mas o aspecto que me interessa é seu caráter libertador em torno do pensamento artístico e a transposição de limites dos territórios da arte; a invenção de novos sentidos para o mundo estimulando a nossa imaginação.
Deste modo percebo que a performance é uma linguagem que parece traduzir muito bem o deslocamento de “Isto é belo” para “Isto é arte” colocado por De Duve, e o estreitamento entre arte e vida. Segundo Richard Schechner[2], “no século XXI as pessoas têm vivido como nunca antes, através da performance”, para ele a performance é um ato que está relacionado à: “Ser”, “Fazer”, “Mostrar-se fazendo” ou “Explicar ações demonstradas”. Schechner traça um paralelo entre o ato performático artístico e cotidiano. Na vida se trata de um “comportamento restaurado” que requer anos de treinamento do indivíduo, desde gestos cotidianos simples, “como escovar os dentes”, até ações mais complexas que exigem de nós uma constante reflexão, como nos relacionar socialmente. O ato performático artístico também exige do sujeito um constante treinamento e passa por uma reflexão. Outro aspecto que reforça a idéia de Schechner, do homem hoje viver através da performance, é o seu convívio com os recursos midiáticos, “performamos” na internet através das webcams, youtube e orkut, assistimos à “notícias-show”, “restauramos comportamentos”. Renato Cohen esclarece em seu, “Performance como linguagem” que “A performance, na sua própria razão de ser, é uma arte de fronteira que visa a escapar às delimitações, ao mesmo tempo em que incorpora elementos das várias artes” o uso de multimídia, e recursos tecnológicos estão presentes reforçando seu aspecto de “arte de fronteira”, num contínuo movimento de ruptura com a arte estabelecida. É válido lembrar que o ato performático, enquanto expressão artística está ligado aos happenings, que tem no estreitamento entre arte e vida um de seus ideais, mas Renato Cohen esclarece as diferenças entre as duas linguagens, afirmando que a performance caminha em direção a um “aumento de esteticidade obtida através do aumento de controle sobre a produção e a criação – em detrimento de espontaneidade e um aumento de individualismo – com maior valoração do ego do artista – em detrimento do coletivo e do social, privilegiados no happening”. Sua linguagem abarca elementos que sintonizam com o mundo contemporâneo; o uso de novas mídias, uma estrutura fragmentada – que poderia refletir a fragmentação do próprio homem – expressão cênica e plástica, pluralidade, e um caráter mais “individualista”, me parecem de acordo com o homem que ao interagir com o mundo através da internet, se isola na frente de seu computador. Uma última citação de De Duve, “A antinomia do julgamento estético moderno está, portanto, resolvida. Tese. A afirmação “isto é arte” não se baseia no conceito de arte, mas no sentimento estético/artístico. Antítese. A afirmação “isto é arte” assume o conceito de arte, assume a Idéia estético/artística. Na tese, “conceito” refere-se à um conceito determinado que deveria ser afirmado teoricamente, e “sentimento”, a todos os sentimentos envolvidos no amor à arte, Na antítese, “conceito” não se refere a um determinado conceito de entendimento, mas, sobretudo, à Idéia indeterminada de razão.”
“Aumento de esteticidade”, “sentimento estético/artístico”, “idéia estético/artístico”, essas colocações me fazem refletir a arte contemporânea com toda a sua pluralidade. Se o artista, enquanto sujeito crítico, pode criar sua obra a partir de um conceito, e o belo já não é mais o centro da questão, o artista performático seja ele oriundo das artes plásticas ou das artes cênicas, estará criando, não necessariamente numa tela (no caso do artista plástico) ou através de um personagem (no caso do ator). Poderá fazer-se parte de sua obra, pois o que ele tem a comunicar é o seu pensamento crítico em relação ao que sua percepção está captando do ambiente social. Da sua obra de arte faz parte o ser que é; determinado por sua visão de mundo, o que ele enxerga, enquanto homem pertencente a essa sociedade, como se relaciona a partir de sua visão e como transforma isso em arte através de si. Vida e arte com limites estreitos, numa linguagem da qual a própria vida já se apropriou, a obra de arte refletindo o entendimento, ou o não-entendimento acerca do sujeito contemporâneo, seu modo de vida e as mudanças que o momento em que vivemos provocou em nossas percepções.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. Revista do Mestrado em História da Arte EBA. UFRJ, 2º Semestre 1998.
SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo. Ano II, 2003, nº12
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1992.
2 comentários:
Gostei muito do que li tenho certeza de que vai me ajudar na minha pesquisa para o meu tcc no qual eu quero falar de performance e as idéias que eu tinha foram esclarecidas por este texto.obg
Gostei muito do que li tenho certeza de que vai me ajudar na minha pesquisa para o meu tcc no qual eu quero falar de performance e as ideias que eu tinha foram esclarecidas por este texto.
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