UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

8.4.08

TEATRO SEM PALAVRAS

Os atores André Curti e Artur Ribeiro em cena no espetáculo Saudades em Terras D'Água.


Por Raphael Cassou

Uma das grandes questões que envolvem o Teatro em nossos dias é a relação existente entre a escrita e a oralidade e as suas formas de transmissão, como aponta Roger Chartier em seu livro "Do Palco à Página" no qual o autor faz um amplo estudo a respeito das transformações sofridas pelo texto e pela cena ao longo dos tempos. A questão é procurar entender a importância do texto para o Teatro e vice-versa. Durante muitos anos o teatro viveu sobre a ditadura do texto, onde se privilegiava a escrita sendo a encenação relegada ao segundo escalão. Relação esta que foi duramente questionada pelos teóricos, estudiosos e profissionais do metiê teatral ao longo do século XX. Apesar da palavra escrita ter perdido sua importância, ou melhor, ter se transformado em mais um dos elementos que compõe a encenação, ela ainda continua muito presente na grande maioria das peças que costumamos acompanhar. Raro são as oportunidades nas quais se pode perceber que o texto nem sempre é essencial a uma encenação. Eu mesmo não acreditava, até a bem pouco tempo atrás, que era possível, em Teatro, contar uma história sem a utilização do recurso textual. Esse panorama mudou quando descobri o trabalho da Cia. Dos à deux. Que em turnê pelo Brasil, realizou uma série de apresentações e workshops divulgando o seu trabalho com o Teatro Gestual. Segundo a definição de Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro, teatro gestual é aquele que privilegia o gestual e a expressão corporal sem, todavia, excluir a música, a fala e os mais diversos recursos cênicos imagináveis. Ainda de acordo com Pavis, este gênero procura evitar o teatro de texto, bem como a mímica. A construção da fala, da frase e da voz estão todas calcadas na utilização máxima do gesto expressivo para que se consiga atingir um determinado fim. Essa é exatamente a tônica do trabalho da Cia. Dos à deux, buscar na gestualidade todo o potencial cênico, coreográfico e dramático, aliando técnicas do teatro oriental como o Nô, o Butô e danças balinesas entre outras. A Dos à deux foi criada em 1997, na França, pelos atores André Curti e Artur Ribeiro. O nome da companhia surgiu a partir do primeiro trabalho da dupla, que teve como inspiração o texto Esperando Godot, de Samuel Beckett.
O mais recente trabalho da trupe - Saudades em Terras d'Água - aborda a temática da imigração e da condição do imigrante, e nos conta a história de uma mãe e seu filho, habitantes isolados no meio de um mar azul-infinito. As personagens vivem uma existência simples, quase arcaica. Um dia, a mãe, preocupada com a continuidade dessa vida, parte em busca de uma mulher para seu filho. A mulher vem de uma outra terra, distante. Os três aprendem a se conhecer e vão construindo seu espaço, apesar de conflitos e confrontos. Aos poucos, uma relação de afeto certamente nasce entre eles. Nada devia perturbar este equilíbrio conquistado em tempos remotos. Só que, um dia, a água que os cercava desaparece, seca. A água se transforma em terra e a partir de agora em um novo ambiente, desconhecido para os três, novos desafios se apresentam.
A peça foi concebida no ano de 2005 e, no ano seguinte, excursionou pelo Brasil em temporada, visitando diversas cidades brasileiras como São Paulo, Belo Horizonte e Santos. No Rio de Janeiro esteve em cartaz, por dois meses, no Teatro II do Centro Cultural do Banco do Brasil. Nesta oportunidade tive a imensa felicidade de conhecer e encontrar os dois atores e realizar com eles um workshop para conhecer a forma como são construídos os espetáculo da companhia e sua metodologia de trabalho. O processo de criação começa a partir da eleição de um tema por André Curti e André Ribeiro. A partir daí, começam os trabalhos de adaptação corporal, através de exercícios de teatro e dança que são repetidos à exaustão em busca da perfeição gestual.
O fato é que o trabalho realizado pela Dos à Deux revela que é possível sim contar uma bela história e não utilizar do recurso da fala. E que de maneira alguma isso indique a ausência de um texto a ser seguido. O texto dramatúrgico está presente o tempo todo da encenação, ele apenas não é verbalizado. Existe uma enorme disponibilidade corporal dos atores à serviço da teatralidade em busca da arte total, termo cunhado pelos próprios atores que associa, sem distinção, escritura coreográfica e escritura teatral, narrando uma história por meio do gesto coreografado. O gesto das personagens funciona como veículo para as emoções e os sentimentos, contribuindo para a dramaturgia.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARTIER, Roger. Do palco à página. Trad. Bruno Pfeifer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Cosaf e Naif, 2007.

http://www.dosadeux.com Acesso em 05 de abril de 2008.

Um comentário:

Unknown disse...

Ainda muito pertinente essa questão texto, ator, teatro. A "resposta" sobre o que faz realmente o teatro ser teatro, ainda não foi totalmente encontrada, ainda há tantas questões sobre isso e tudo mais que o teatro pode fazer. Penso sim que no teatro tudo é possível. As possibilidades são imensas, como mesmo você mostra nesse ensaio com a Cia Dos à Deux.Como na citação de Artaud, o teatro é um lugar de encontro de pessoas, há sempre uma troca, ou deveria haver. Talvez essa seja a maior especificidade do teatro, o encontro presente, do aqui e agora, do momento de sua feitura num contexto real.