UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

4.5.08

Ler o Teatro

Ler o teatro

O olhar deseja sempre mais do que lhe é dado a ver.
Adauto Novaes

O teatro se faz e refaz em memória por meio do sensorial. Lembro-me bem, os cheiros, as imagens, sentidas na minha primeira ida ao teatro. Tinha uns cinco, seis anos talvez. A imagem se reconstrói em mim devagar, impulsionada por aquelas impressões que senti no corpo e nas minhas tentativas de compreensões infantis. Vejo-me entrando com meus pais num grande espaço, espaço possuidor de cadeiras perfiladas que desciam em degraus conforme íamos procurando nosso lugar. As cadeiras davam para uma espécie de “espaçozinho especial” retangular, fechado por uma imensa cortina. Ainda sorrio ao me lembrar do comentário para mim mesma em silêncio: “Que cortina grande!”. Era de uma cor forte, vermelha talvez, mas o que me impressionava era o que parecia esconder, o que tinha para revelar e o que eu em breve poderia ver. Pequenina, sentia-me ainda mais minúscula na cadeira acolchoada. Estava desconfortável. O lugar era longe do “espaço especial” e ao mesmo tempo ele parecia-me tão próximo, requerendo meu olhar e minha curiosidade.

Quando as luzes se apagaram percebia uma distância cada vez maior entre mim e o que estava prestes a acontecer diante de meus olhos. As cortinas abriram-se lentamente e muitas luzes jorraram no palco. Sentia um cheiro, familiar e estranho, um cheiro de talco, talvez. Uma profusão de luzes, de muitas cores, ou melhor, algumas sobressaíam, feixes luminosos na cor azul e branca enchiam o espaço e destacavam pessoas, uma delas vestida de rosa, que parecia estar no centro de tudo. Naquela primeira visão, lembrei-me das palavras de meu pai, dizendo que o que eu iria ver era uma peça da Miriam Rios[1], que contava uma história de uma princesa criada por fadas-madrinhas. Naquele dia tudo para mim era mistério, tudo estranho, espantoso, tudo cheiro, cor, fantasia. No fim, um código: as palmas. Com elas, lembro que pensei: o teatro acaba. Termina com as palmas da gente, pra recomeçar depois. O teatro com todas essas luzes, vozes e cores só vai ficar na lembrança da gente. Eu começava a ler o teatro.


Podemos ler livros, cartas, tanto quanto uma cadeira antiga, um papel invólucro de um bombom recebido sem data especial, um figurino que nos é dado para interpretarmos uma personagem.Como afirma Maria Helena Martins a leitura não se caracteriza somente por um decifrar de letras e símbolos. A leitura se processa nos níveis sensorial, emocional e racional. A construção do sentido se dá por esses níveis imbricados. Níveis que abrem para o espectador a possibilidade do olhar e do ser olhado pelo objeto a ser lido.

O teatro...
... Encontro-o ainda hoje aurático. Descubro-o ainda misterioso e totalmente estranho, ainda que tão mais próximo de mim. Como explica Georges Didi-Huberman - acerca do conceito de Walter Benjamim de aura - podemos definir por aurático o objeto cuja aparição desdobra para além de uma visibilidade suas imagens, imagens em constelações ou em nuvens, “que se impõe a nós como outras tantas figuras associadas, que surgem, se aproximam e se afastam para poetizar, trabalhar, abrir tanto seu aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do inconsciente”.

O teatro em seu caráter aurático se abre para a platéia, aparece, aproxima-se, afasta-se, desfigura-se e transfigura-se à visão do espectador. Ele sugere ao sujeito-objeto, que olha e é olhado pelo espaço cênico, o poder do olhar e o poder da distância. Ao “levantar os olhos” para o acontecimento teatral, em seus múltiplos corpos, orienta – se nesse esvaziamento e distância, nessa possibilidade objetiva de um ter, de um estar naquele lugar, de tocar seus signos – o trabalho da memória. Como explica Didi-Huberman, o trabalho da memória orienta e dinamiza o passado em destino, em desejo, em futuro (Didi-Huberman: 151). A memória constitui o futuro na força de um desejo.

E foram esses poderes, o do olhar e o da distância, que me arrastaram, criança, por entre os desejos de estar naquele espaço, sentir-me ligada a ele, desvendar seus segredos, suas relações. Comecei a estudar interpretação teatral, com uns quinze, quatorze anos e percebi, nessa época, que não era somente o espaço físico - que envolvia o teatro nessas imagens significativas que iam e vinham - que me intrigavam. Era uma confluência de trabalhos, de possibilidades, de leituras num jogo de relações formadas por múltiplas vozes que preenchiam esse corpo e o fazia caminhar. O que me intriga, ainda hoje, não é a história que é contada e sim a forma com que ela toma iconicidade, o processo que acontece num espaço potencializador de um entrecruzamento de muitas leituras, a dos atores, do autor do texto, do diretor, do figurinista, do cenógrafo, do iluminador, do espectador. Hoje o que mais aprisiona e liberta minhas indagações, são perguntas relativas ao entrecruzamento de vozes que constituem a arte teatral, ditando a partir de leituras, indicações, rubricas, que constituirão a realidade efêmera da cena, do espetáculo.

As Diferentes Leituras construindo a Encenação

O teatro para mim é didascália.
A modernidade chega ao teatro no início do século XX, com discussões sobre o que realmente constitui a arte teatral. Cria-se uma figura que passa a concentrar em suas mãos o poder antes dividido entre o autor do texto e o intérprete: uma mistura de didascalo e plotter aparece nos palcos, não mais como organizador, mas como verdadeiro criador da cena - o encenador.

A partir de então, o espetáculo passou a ser considerado como mais que uma simples materialização ilustrada do texto, agora visto a partir da ótica do encenador, do especializado na cena, daquele que possui um ‘saber diferencial’ (Foucault). Foucault (1993, p.170) afirma que o saber diferencial se opõe ao saber comum, por ser um saber particular sem unanimidade, e que só deve sua força à dimensão opositiva face aos saberes circundantes.

A explicação de Foucault esclarece a modificação causada na cena e nas funções dos criadores teatrais, com o advento do encenador. O encenador aparece como sendo dotado de um saber particular, é um especialista da cena; ele está para o teatro como o saber médico está para o doente ou para o enfermeiro; torna-se o encarregado de organizar o espetáculo de acordo com uma leitura pessoal, chamando para si a responsabilidade estética de procurar soluções cênicas, de conduzir o jogo.

O saber especializado na cena, que o diretor abarca, estabelece uma relação de dominação entre atores, autores, cenógrafos. Chamando para si a responsabilidade do jogo cênico, as escolhas estéticas do espetáculo a partir de sua leitura, o encenador passa a utilizar como convêm à cena (e como lhe convém) os recursos disponíveis: o texto do autor, o corpo do ator, as didascálias. Cortes, modificações, desconstruções do texto são manifestações de um exercício de poder do didascalo moderno, que o autor dramático percebe como infidelidade, traição, descaso, falta de respeito, e incompreensão artística. O argumento de Ionesco na carta destinada ao primeiro encenador de sua obra As Cadeiras pode explicitar o nível de tensão entre dramaturgo e encenador na metade do século XX. Eugéne Ionesco acusa os diretores de não compreenderem os textos e modificarem a obra escrita por simples vaidade ou disputa.

Mediante tanto a especialização do encenador como criador da cena quanto à separação dos ofícios, as didascálias passam a ser um mecanismo autoral de ‘salvação’ de seus textos, de proteção a sua criação, de condução de uma leitura que se estabelecerá de forma vista, no palco. Só que esse mecanismo passa a servir também ao diretor. Se, por um lado, as didascálias surgem no texto teatral indicando uma cena que se passa na imaginação do autor, cujos detalhes ele quer garantir que sejam lidos, entendidos (e obedecidos!) pelo futuro encenador, por outro se torna mecanismo de exercício de poder do diretor, que pode simplesmente ‘aconselhar’ atores, cenógrafos, figurinistas: não leiamos a rubrica!
Luiz Arthur Nunes:
Sim é, a questão da didascália é sempre muito complexa por que tem até uma certa, é (digamos assim), um certo consenso entre aspas em teatro que a rubrica não deve ser obedecida, rubrica não é área do dramaturgo...
... quer dizer, o dramaturgo escreve o texto e o diretor é que resolve como é que vai ser dito, como é que é a marcação, etc. [2]

Os encenadores passam a cavar fossos cada vez maiores entre o texto de teatro e a cena. Autores são acusados de - utilizando muitas vezes as didascálias para o controle de uma futura encenação - se meterem em áreas que não são as deles[3]. Os diretores são taxados de não compreenderem os textos, não extraírem das leituras suas significações mais profundas; será que a não observância das didascálias promove essa incompreensão? Quem leva a melhor nessa disputa? Quem leva a pior?

Como lembra Foucault, o poder ‘não se dá, não se troca, nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força’. Ele se dá em cadeia e não deve ser analisado como um fenômeno maciço de dominação a dividir entre os que o possuem e os que não o possuem. O poder circula (op. cit., p. 173).

A relação de autores-diretores-atores-figurinistas-teóricos-cenógrafos pode ser vista, portanto, como uma relação de força, de poder, uma ‘guerra prolongada’ por outros meios, advindos principalmente de discursos que visam legitimar a separação de campos no fazer teatral:
Os diretores escondem um pouco o seu jeito de trabalhar; essa autoria do que os outros fizeram é uma autoria plena, você vê um espetáculo, eu vejo um espetáculo que fiz, me identifico a cada instante, vou vê-lo um tempo depois, digamos que eu viaje e um espetáculo meu continue em uma cidade em que eu não estou e não posso acompanha-lo. Quando volto os atores dizem: “Você vai notar como mudou, você vai ver”.Os atores ficam preocupados e eu vou ver o espetáculo, porque o que passou nesse processo de transformação, passou no peito, na compreensão dos atores, e fez eles ajustarem um sentimento ou uma ação ao sentimento melhor, e o espetáculo é mais meu.[4]

O discurso do diretor teatral Aderbal Freire-Filho manifesta uma tentativa de legitimar o poder do diretor e a condição de autoria do espetáculo. Ele utiliza enunciados tais como o ‘espetáculo que fiz’, ‘o espetáculo é mais meu’, remete para si inclusive transformações que ocorrem no ofício dos atores.
O caso da mudança no espetáculo reflete como se dá a circulação de poder idealizada por Foucault. O poder não se caracteriza por uma manifestação de forças unilaterais, em que um o detém e o outro não. Se o diretor imprime ao espetáculo suas didascálias, suas diretrizes e instruções, no aqui-agora do jogo teatral, o ator tem a chance de fornecer à cena suas próprias didascálias, suas próprias indicações e a conseqüência disso é a mudança, mudança diária, própria do fenômeno que se instaura no momento que ocorre o fenômeno teatral.
[1] A peça teatral era “A Bela Adormecida”, cuja protagonista era construída pela atriz Miriam Rios. O Teatro era o João Caetano, na Praça Tiradentes, Centro da Cidade do Rio de Janeiro.
[2] Trecho do depoimento de Luiz Arthur Nunes (Diretor Teatral e professor do Departamento de pós - graduação em Teatro da Unirio) fornecido durante a Seminário Nelson Rodrigues Lírico em 07/12/2002 realizado no SESC-Copacabana.
[3] Ver a entrevista com Luiz Arthur Nunes na íntegra no anexo.
[4] Depoimento de Aderbal Freire-Filho. In: DELGADO, Maria M. e HERITAGE, Paul (editores). Diálogos no Palco: 26 diretores falam de teatro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora. p. 128-129 (cópia na íntegra em anexo).

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