UNIRIO
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Centro de Letras e Artes
Departamento de Teoria do Teatro
Crítica Teatral Ensaística (CTE - 2008.1)

21.5.08

A recepção pós-vanguarda: o espectador diante da cena.

Por Jonas Arrabal

Imaginemos a cena como um quadro. Uma pintura. Imaginemos o palco, as coxias, os panos de fundo como uma moldura, que separa a cena da realidade, que limita o espaço da cena e o espaço da vida. Agora, imaginemos um quadro sem molduras, uma pintura que atravessa esse espaço em que está representado. Sem moldura, a pintura ganha um novo espaço, ou melhor, não se localiza num espaço definido. Essa imagem é bastante significativa para pensar num novo espaço para a cena teatral, sua localização e também a localização do público, como participante ativo da experiência teatral.

Não se trata de analisar as diferentes formas de recepção. Uma é diferente da outra e sabemos que os diferentes momentos da história do teatro só são possíveis uma vez que novas discussões são trazidas para dentro da cena, e novos questionamentos para o fazer teatral. Portanto não é possível pensar na nossa cena atual como algo que sucede de forma autônoma o momento anterior do teatro e sim complementar. Num certo sentido um é continuação do outro. É possível pensar numa linha teatral contínua.

Não são claros os momentos de ruptura que o pensamento propõe, assim como na literatura não é possível definir onde um movimento literário começa e onde a outro acaba de forma precisa.

Por exempo: podemos relatar a importância do pensamento de Brecht para compreender o caminho do teatro atual, lembrando que para o desenvolvimento de tal pensamento foram levantadas questões que originaram esse pensamento. O que quero dizer é que essa linha de pensamento é continuação de um fazer teatral, que sofre mutabilidades ao longo do tempo, tendo obrigatóriamente uma necessidade de continuar a pensar sobre a arte do fazer teatro.

Como exemplo na introdução do texto, trago imagens da pintura e a explosão da moldura no período vanguardista para ilustrar o que acontece na cena hoje, trazendo a imagem do quadro teatral e também da sua explosão pós-vanguarda.

Vale destacar que o pensamento vanguardista ainda não foi totalmente absorvido, as mudanças se dão com o tempo, e tal pensamento ainda se dá numa história muito recente, levando em consideração todos os anos da história da arte.Vejamos que mesmo depois de décadas do primeiro manifesto vanguardista nós ainda levantamos a famosa questão : isto é arte?.

Na pintura o papel do espectador era bastante claro. Ele se posicionava frente à tela. A moldura indicava onde começa e onde termina. A ilusão projetada, tal qual uma janela, fazia o espectador ver a cena que era representada na pintura. Desde o renascimento a pintura perspectivada retratava um cena, emoldurada. Estudando melhor a história da pintura podemos perceber certos movimentos que antecedem a vanguarda, que já apresentam uma nova abordagem, como o caso do impressionismo, que de certa forma começa a questionar essa localização do espaço retratado na pintura e do espectador diante do quadro perspectivado, dando a impressão de realidade. O que iremos tratar aqui não é a história da arte, e nem a história do teatro, mas a recepção do espectador diante essa nova cena, tal qual essa nova pintura, sem molduras.

Num primeiro momento há o estranhamento, que é totalmente explicado quando lidamos com o desconhecido. A colagem de Picasso e de Braque são diferentes das pinturas de Vermeer, por exemplo. Pode-se ilustrar isso através de uma imagem: nossas pupilas que se abrem quando tem o mínimo de claridade e consegue enxergar o mundo. Diante de um Picasso, Braque, diante de uma encenação de Richard Foreman ou Bob Wilson, por exempo, é como se as nossas “pupilas” não se abrissem, uma vez que seu olhar não está acostumado com esse tipo de pintura ou espetáculo. Não é possível “decodificá-lo” com os mesmos olhos. É preciso uma adaptação do olhar para essa nova cena.

Na pintura esse movimento se deu da mesma forma. Não há mais ponto de fuga nas telas, e a pintura ultrapassa um outro espaço, não mais limitado pela moldura. Um novo olhar tem que ser cultivado pelo espectador para a pintura e para a cena, que não estará necessariamente no palco, que irá atravessar o espaço que já se configurou sendo o espaço destinado para a cena. O espectador pode estar dentro do espaço, o espectador irá ter uma participação mais decisiva dentro do espetáculo. Na nova cena pós-vanguarda a platéia irá ter a sua compreensão. Os dados estão na cena, e o público de certa forma também está na cena. Agora ele irá “decodifica-la”, irá fábricar seu pensamento. Os dados que serão propostos pela cena não estarão numa ordem em que o espectador irá associá-las de imediato. Em muitos casos é possível o espectador sair do teatro e continuar tentando juntar os cacos que ele mesmo trouxe da cena, que ele desconstruiu.

Patrice Pavis fala em numa relação antropológica para essa nova cena, onde as barreiras entre as diferentes culturas de todo o mundo caem, e se encontram dentro da própria cena. É possivel ver isso nos espetáculos do grupo internacional de Peter Brook, e no trabalho desenvolvido pelo Odin Theatret, tendo a frente o italiano Eugenio Barba, radicado na Dinamarca com seu grupo multi-racial e cultural.

É preciso o espectador abrir mão de certas configurações que ele possui como espectador, e ciente que em muitas vezes ele irá “sentir” mais o espetáculo do que “entender” o que a peça tem para dizer. Digo entender em aspas, pois a compreensão desse tipo de espetáculo está além de um entendimento racional, e mais dentro de um conjunto de sentidos, que fará ele penetrar na cena sem precisar entendê-la racionalmente. Será melhor aproveitado pelo espectador se ele abrir mão desse “conforto” da sala escura e da poltrona macia, e deixar ser estimulado pela cena, criando sua compreensão que pode ser pessoal e intransponível. Isso tudo pode ser aliado a experiência pessoal de cada um, e a capacidade que cada um tem de se deixar fluir diante dessa experiência. É trabalho difícil, mas é um trabalho de adaptação do olhar, adaptação pessoal do olhar.

Em muitos casos essa relutância se resulta em frustação por não ter entendido o espetáculo assistido. Mas vale lembrar que essa frustação se dá, muitas vezes, por que o entendimento que se espera é aquele que seu olhar está acostumado, mas a relação que o espetáculo assistido propõe vai além dessa compreensão racional e está mais num sentido sensorial. .

O teatro pode tudo. Pode fazer o que quiser, transformar o palco em qualquer coisa. Isso é fantástico. É uma particularidade do teatro. Mas do outro lado corre o risco de se transformar numa atividade autônoma demais e sempre ser visto avant gard pelo próprio espectador. O que é totalmente errado. O espectador caminha junto, ele faz parte do espetáculo e desempenha papel muito importante..

A questão da compreensão é dado muito presente na nossa tradição ocidental. Queremos entender as coisas, e não ficamos satisfeitos sem entender os preâmbulos. Diferente da tradição oriental por exemplo, que dispensa bem mais as palavras do que nós.

Antonin Artaud criticava essa tradição psicologizada da cultura ocidental e defendia uma aproximação da cultura oriental, metafísica segundo ele. As coisas são por que são, e pronto. Nós, ocidentais, queremos entender por que as coisas são do jeito que são, o porquê das motivações, e vários outros porquês.Não é possível esconder nossa tradição, afinal a semiologia é um estudo basicamente ocidental. Eugenio Barba defende uma união do pensamento artaudiano e da análise semiologica clássica ocidental.

Quando falo em adaptação do nosso olhar diante dessa nova abordagem proposto pela arte significa que os nossos “porquês” diante da cena não serão tratados de forma universal, de forma que todos entenderão o que a cena quer dizer. Será uma análise a maneira de cada um.

É preciso adaptar o olhar porque a cena não vai dizer tudo o que você quer saber. Os acontecimentos não se darão da mesma forma e numa certa medida a psicologia será cada vez menos presente. Num certo sentido as coisas irão se caminhar mais de forma metafísica que psicológica, no sentido de que o que é visto em cena será cada vez menos explicado pela psicologia.

Hoje, pós-vanguarda, pós-Brecht, pós-Artaud, continuamos pensando na cena. Após toda a reflexão que o século XX propôs qual será o desafio para a cena teatral nesse novo século que se inicia? O teatro é arte em processo, em construção. Já que trabalhamos bastante com imagens desde o ínicio do texto, é como se o teatro fosse poeira que nunca se assenta. Caso contrário seria o aniquilamento do teatro, se a própria reflexão teatral encontrasse esse ponto de solução para toda a inquietação que cerca o próprio ato de fazer teatro.

E onde o público se localiza em meio a toda essa reflexão?A mesma inquietação que surge de dentro da cena é a mesma que envolve o espectador? Falemos em adaptação do olhar, mas o público realmente está inserido nessa construção dessa nova reflexão? Acredito que sim. Que o público, de certa forma, está inserido sim nessa nova reflexão. O público faz parte do espetáculo. Algo é produzido para alguém que vê, que assiste. Penso que uma nova reflexão hoje surge também no espectador, uma reflexão que questiona o próprio lugar em que está localizado, na convenção da platéia como espaço limite do espectador.

Como se dá a recepção desse obra de arte que é apresentada no palco? Falo em “palco” como lugar da representação, qualquer palco, não necessariamente a mesma configuração do palco italiano. Mesmo depois da era da reprodutibilidade técnica relata por Walter Benjamin, o teatro – mesmo estando fora do palco italiano – não sofreu, como as artes gráficas, com a perda da sua “aura”. Isso por que o teatro possui um poder muito forte: o aqui e o agora da representação. Mesmo que o espectador veja outras vezes o mesmo espetáculo ele sempre será o “outro espetáculo”, um mesmo espetáculo que será diferente do que ele assistiu outro dia. E ainda terá um outro fator. Corre o risco dele desconstruir toda sua compreensão que teve num primeiro momento e passar a construir novas reflexões à medida que assiste o espetáculo, algo que se perdeu naquele emaranhado. Como afirma Silvia Fernandes a respeito da encenação de Gerald Thomas, o espectador é responsável por ligar todos os fios soltos pela cena, criando uma corrente que será resultado da sua compreensão.

Juntar os fios soltos propostos pela cena será papel fundamental do espectador diante da cena contemporânea. O teatro ainda é mágica feita na presença do espectador. Mesmo sendo em palco convencional ele perdeu as suas “molduras” e certas convenções foram por água abaixo, principalmente aquela que criava uma quarta parede diante da platéia e se fechava num mundo a parte. Agora o espectador irá fazer parte desse mundo, tendo em suas mãos o poder de construir uma nova história para a cena teatral.

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